Sunday, July 31, 2005

Ontem

O Cara do Contrabaixo

Ele tirou o cigarro da boca, bateu no cinzeiro, tocou de leve as teclas e perguntou:
- O que você quer?
Ah eu queria muito mais do que uma simples música, ele sabia bem, mas era esta mensagem não dita que, antes, tornava mais denso o laço que nos unia.
Engoli em seco e respondi:
- Cole Porter
Sorriu, colocou o cigarro no canto da boca e começou... tocando as teclas devagar, amorosamente, como me preparava para o amor.
A música, nossa música.
Acompanhava o ritmo com a cabeça, com os pés, com o corpo( e eu também seguia atrás ) inundando de tons a tarde clara.
O apartamento estava escuro contra a luz que morria lá fora. Permanecíamos assim, unidos pelo som. O contrabaixo estava esquecido em um canto, hoje era dia de piano, dia de percorrer rios e cachoeiras.
Nós. Silhuetas caladas, mas tão unidas que uma simples palavra quebraria o encanto.
Cole Porter.
Ele terminou a nota macia e me agarrou. Me pegou com violência, como era seu feitio quando mais estávamos perdidos de paixão.
Me empurrou contra o piano, levantou minha saia e me fez percorrer outras cachoeiras, me fez derreter em outros rios. Calados, nos amamos, machucando teclas, gemendo apenas, na escuridão que se adensava.
Então , ele me largou de repente, apanhou o contrabaixo, andou até a porta, pegou o maço de cigarros sobre o piano, olhou longamente para mim, como se decorasse cada detalhe e saiu.
Foi embora, para nunca mais voltar.

Memories

A Camisa

A camisa foi deixada sobre a cadeira
Porque existe a hora e
então
Ela é bandeira da qual se quer vitória

A calça é deixada sobre a camisa
Porque se quer o agora lembrável.

Adreços, maneiras, brincos, jeitos, sei lá
São alijados
Porque se quer do fundo da vida
O olhar vermelho saciado.

Porque se quer o retorno amplo do momento morno
A camisa é retomada e vestida
E porque se quer a vida,
É mal abotoada.

( José Maria Monteiro de Paiva )

Friday, July 29, 2005

E a Luz se fez

FIAT LUX




Nos pântanos da Sombra caminhei dez mil anos, me cortando em penhascos escuros e pontiagudos, carreguei cascalho cinzento por incontável tempo, rolei pedras em montanhas de granito, caminhei por negras estradas empoeiradas e indistintas, sob um céu sem estrelas e sem cor. Viajei por rios de chumbo, choveu sobre mim água da cor dos corvos que povoavam meus sonhos enevoados.

Rabisquei em preto sobre preto nos papeis que não via, continuei por escarpas antigas, movi detritos ácidos e nuvens plúmbeas me perseguiram numa paisagem cega. Vulcões cinzentos de lava negra me cobriram, sombras de seres que não distinguia me acompanharam, raios sem luz percebidos apenas pelo som, espreitavam para me abater sobre solos de petróleo ardente, cinza negra solidificada, mares cor de ágata, árvores feitas de carvão, de tudo que já fora um dia.

Percorri pesadelos de escuridão. Enfiei meus pés nas poças lamacentas, escorreguei em pretos e cinzentos pisos sem ver. Meus olhos estavam abertos para o negrume. Minha carne estava percorrida de sombras, meu corpo vazado de impossibilidades.

Então você surgiu e a Luz se fez.

Flores rasgaram os brejos, penhascos se cobriram de grama, caminhos se enfeitaram de árvores e galhos, e plantas. E pássaros cantaram e choveu prateado e o sol se derramou na Terra em fogo. E os astros moveram o céu, as estrelas pesaram de alegria, o meu corpo se abriu de possibilidades.

E foi de novo Gênesis em mim e em toda parte

Em algum lugar

Em algum lugar anoitece
Mas é longe demais e não importa
Em algum lugar anoitece
E a lua parece
Uma resposta
Em algum lugar anoitece
Ma na alma
É sempre esta manhã
Sem calma e descomposta

Wednesday, July 27, 2005

Chore-me um Rio

Docemente

Sim, eu morri mil vezes. Atravessei o inferno e fui esmagada pela certeza. Onde encontrei forças para ainda estar? Ninguém pode dizer... havia um talvez excessivo na minha história, manchas de poluição emocional, sujeiras infinitesimais de afetos. Mas a luz, quando veio, foi absoluta lâmina.
Traição, o que é traição? Por acaso sou dono do meu irmão, do meu amigo, do meu amor? Deuses! Quem são os deuses para me julgar? Eu morri, estou morta, é meu corpo que não pedi para usar, me emprestaram com juros. Devolvo agora. Sou muito mais do que ele, sou muito mais do que sorrisos na brisa de setembro, muito mais do que as uvas, cujo sumo escorria no seu queixo aquela sexta-feira. Muito mais do que cada pedaço do nosso cotidiano esfrangalhado. Não quero nada. Nunca desejei nada. Só um gesto de carinho e era tudo. Docemente.
Como tem a coragem de dizer que eu ainda não morri? Estou morta, enterrada, virei pó de estrelas, sumi na poeira dos tempos, eu morri há mil anos atrás, me desintegrei, muito antes dos meus sonhos terem se tornado adubo debaixo das arvores de ontem... ouviu? Você me ouviu?
Caronte me olhou frio.
A bruma era espessa e a água se espraiava oleosa, cinzenta. Gotas de silêncio escorriam entre nós.
Sem palavras, ele me estendeu a mão para o barco. Havia uma pequena gentileza no gesto.
Longe, muito longe, Billie gemia rouca: chore-me um rio.
Um porta bateu.
Passos em direção ao meu corpo, uma mão que me toca devagar ah, tão docemente...
Mas eu já não era.

POIS HÀ INCENDIOS SOB A CHUVA RALA (CAZUZA)

Chove

Chove e eu sei disso dentro de mim.
É dentro de mim que a chuva escorre mais intensa.
Onde meu coração perdeu o abrigo.

Tuesday, July 26, 2005

Longe deste insensato mundo

Opções Imperfeitas

Olhou para o céu laranja.
Poderia ter trazido a cabeça para passear, mas ela andava desagradável ultimamente. Recusava-se a cooperar.
Céus! Que tempos eram estes em que cabeças começavam a ter idéias próprias e a contestar seus participantes.
Quando o Jogo era, realmente, sério, estas coisas jamais aconteceriam.
Então, que ficasse lá, no Tonel, pensando na não-vida.
Um sorriso sardônico surgiu na sua neo-boca.
Neo-bocas também andam tendo reações individuais incompatíveis com o Cubo.
Tudo estava diferente hoje em dia.
Os braços mantinham movimentos reivindicatórios, mãos pretendiam ser capazes de masturbações em horas impróprias, causando constrangimento.
Pensava, imprecisamente, numa época em que as pessoas eram inteiras. Há lendas sobre isto, mas são apenas lendas.
Alguns cientistas têm trabalhado com estas hipóteses, mas até agora nada revelaram de concreto.
Que idéia extravagante! Indivíduos com cabeça, tronco e membros colados e dependentes.
A sugestão parecia tão estapafúrdia que a neo-boca começou a rir, um rito nervoso.
Deu uma pancada seca nela, para que voltasse ao seu lugar e pensou que não seria uma má idéia, agora que as cabeças andavam tontas e cheias de desejos.
Como integrante da casta superior, poderia usar vários rostos. Inúmeros braços e pernas, incontáveis intestinos e corações, milhares de pênis ou vaginas.
Mas era um peerth de alma suburbana, gostos simples.
Nunca fora de orgasmos múltiplos ou paixões desenfreadas. Nem mesmo de comilanças ou orgias.
A neo-boca se franziu em muxoxos.
Ah, percebia a causa dos descontentamentos em suas partes.
Era exatamente a frugalidade em usá-las.
Mas que absurdo isto! Onde já se viu coisa igual!...
Há pouco tempo atrás seria inimaginável que os seus pedaços pudessem ter sentimentos próprios.
Algo estava acontecendo e seria preciso dar um basta, antes que surgissem subversões intoleráveis da carne.
Iria, em algum fragmento de tempo medido, ao Conselho, e relataria suas suspeitas e apreensões.
Mas agora deveria se integrar ao céu laranja.
Descartando a neo-boca, as cinco pernas leves e os dezoito olhos, voltou a ser puro espírito.
Maravilha!.. na verdade era um dos poucos que nunca entendera porque deveriam se submeter a encarnação outra vez, mesmo que apenas para jogar.
Eterna insatisfação do homem.
Que se danem as cabeças!
Levitou sobre todas as coisas e se integrou ao Um

Monday, July 25, 2005

Azul Turquesa

O ovo azul turquesa

O Ovo Azul Turquesa estava lá, em um botequim qualquer,
numa suja vitrine sem nome.
Estava lá como estamos nós todos.
O Ovo azul turquesa é a vida – belo, inútil, sem sentido.
Tudo é desesperada coragem de afirmar.
O Ovo azul turquesa sou eu.

O Ovo azul turquesa é você.
Carpe Diem.

Sunday, July 24, 2005

Cigarette Blues

Cry me a river

“ Cry me a river... I cried a river over you”


Nem lembro mais o porque do nome da banda. Acho que foi a sonoridade. Ao nosso inglês precário parecia bonito - cigarros e azuis, tristezas e blues, como os que cantávamos imitando Billie.
Então ficou Cigarettes Blues, mesmo depois que aprendemos alguma coisa das letras que cantávamos pelos bares da vida. Nas estradas perdemos a ilusão e o blues. Ficaram os cigarros, as tosses noturnas, pastilhas meladas nos bolsos e a guitarra desconjuntada do Billie.
Billie se chamava Edvaldo, morava em Cachambi e tinha um dente de ouro lateral que aparecia quando cantava. O cabelo continuou comprido, sobrevivendo à moda e ao desencanto.
Ninguém se interessava pela música que amávamos, os marginais dos bares sórdidos queriam lamentos caipiras e mais recentemente, sambas abolerados, ou pior, sambas rurais, um pastiche absurdo de ritmos, transformados em sopa cáustica que descia pelos nosso ouvidos como lâmina. Fazer o que? beber e fumar que era a sobrava após a divisão dos ganhos.
Mimi desistiu primeiro. Arrumou um fazendeiro rico, na versão sonhadora dela, um sitiante remediado, segundo as más línguas das banguelas.
Ficamos os três sobreviventes: Marina, Billie e eu.
Marina era bonita, podia ter escolhido vida melhor, mas foi atrás dos Cigarettes bues e das luzes da ribalta. Ficou arrastando perdidas ilusões pelas sórdidos palcos das cidadezinhas minúsculas, em periferias empoeiradas. Seu cabelo brilhante permaneceu com a ajuda da química, mas uma auréola grisalha justificava os traços gastos, as olheiras escuras e a voz rouca.
Um dia Mimi voltou e não perguntamos nada. Mais triste, mais velha.
Tudo isto eu podia suportar. Suportei sempre, mesmo quando o sonho virou pesadelo, pior, virou tédio, vazio, vozes na madrugada, vaias, conversas paralelas enquanto cantávamos, só de pirraça, nossos antigos blues na guitarra desafinada.
Mas quando o cara começou a nos descompor, quando levantou da mesa com sua garrafa de uísque, sua arrogância de freguês rico, quando nos chamou Cigamerdas blues, eu não agüentei.
Lembro de tudo como num filme – eu andando em câmera lenta até a nossa mesa, abrindo a bolsa, pegando o velho revólver companheiro da estrada.. e atirando ...atirando, atirando e atirando... uma bala para a dor... para a humilhação, pelos sonhos desfeitos, outra ainda pelas roupas rasgadas, os cabelos compridos, o dente de ouro, os cigarettes das madrugadas, os blues esfarrapados.. até descarregar o tambor, até me esvair em lágrimas quentes que carregaram embora a visão do sangue, da noite, da vida.
Não atirei no cara, entende?.. não, não foi nele. Foi em nós.
Nos cigarette blues.

Saturday, July 23, 2005

blues por seus pensamentos

Um blues por seus pensamentos

Um blues por seus pensamentos... rodando, rodando... onde estão todos? Ele me roubou um beijo embaixo da escada... foi embaixo da escada? Lembro que os jasmineiros floriam... toc toc toc saltos martelando o tapete gasto... lembra do jasmineiro? a fechadura range... velhas fotos amareladas você estava bonito, uma canção de amor.. um blues por seus pensamentos... summertimes.. era verão? Ou primavera? cheiro de mofo e poeira... passos leves. Atrás da cortina há passarinhos mortos, lembra? Ou eram os gafanhotos que escondemos nas mãos febris.. suas mãos que descobriram meus segredos.. um blues por seus pensamentos... quadris doendo, pernas que mal sustentam, varizes tão antigas, roxos rios de sangue duro... seu sangue na parede... eu não quero lembrar.. os gafanhotos.. ou eram pássaros azuis? Blues... você me enlaçando, aquele bolero, o piquenique dos estudantes do secundário, a boca torta de Marina. Onde anda Marina? Lucia? Pedro? Hermano? Caperucita la mas pequeña de mis amigas... range a madeira, farfalham os papeis ao vento, rompem-se as fotos os lacres , borboletas... teu sangue escorre da parede branca, o baú, as fotos tintas, quem morreu? Foi Luis? foi Luis? um blues por seus pensamentos... eu te odeio, odeio a traição , nunca vou perdoar... mas eu nunca vou te trair, bobinha falo serio sério, muito sério, os dois ali abraçados, boca com boca os corpos nus... tiros atrás da cortina, tem pássaros feridos, gafanhotos, tem sua foto coberto pelo sangue dela... onde andam os dias que se foram? Nuvens azuis percorrem o céu branco teu sorriso. Fecho o baú.. plec cheiro de jasmim. Os pássaros me levam, gafanhotos e vou subindo devagar.. um blues por seus pensamentos, muitas flores, alço vôo.
Ao longo do caminho vejo as casas, todas as casas, as escadas, gramados, vejo uma velha remexendo no baú. Blues por seus pensamentos. Quem é ela? Quem somos nós? Os anjos da madrugada, a memória, o absurdo final, os espectadores que aplaudem, a cortina.

O ovo azul turquesa e as galáxias


Em algum lugar do sujo, engordurado e pobre balcão do bar existe um universo, galáxias girando para o ralo cósmico do absurdo. É tarde, é muito tarde para o Coelho da Alice.
Nós sonhamos o mundo , como dizia Borges

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