Sunday, November 27, 2005

FÁBULAS MODERNAS

"Ó tempo de amoras" ( anônimo )

SOU BURRO

Se soubesse como tudo ia terminar, nem teria recebido o desgraçado Sérvio naquele Tertius chuvoso. Para me oferecer negócio irresistível.(são sempre irresistíveis os negócios para te ferrar).

Quis fugir, mas ele já me agarrara com a mão biônica - era um emprego de auto-ajudante na mansão do milionário Parabellus.

Bom, emprego assim é coisa que raramente cai do céu. Ficar eternamente recitando palavras de otimismo e trechos do Paulo Coelho Neto na mansão deste milionário era o trabalho que pedi a Deus.

Devo explicar que os ricos não precisam se auto-ajudar, contratam especialistas para isto. Assim, mantém sua mente focada em tarefas mais interessantes, como exterminar latinafricanos da Terra em experiências para testar a potência das armas com que se destruirão em menor tempo do que levo para piscar um olho.

Mas isto não interessa agora. O importante é que aceitei agradecido, sem saber o tamanho da encrenca em que me metia.

Cheguei a mansão dos Parabellus, pontualmente, ás oito horas e fui conduzido à biblioteca suspensa sobre a piscina azul. Enquanto ele fazia flexões ouvivendo músicas, eu comecei minha cantilena sobre mestres do Oriente e a capacidade infinita do Ser.

Observei que parecia entediado e algo zangado e não entendi porque contratara meus serviços. Só muito tarde soube que fora uma exigência da esposa para não pedir divórcio e ficar com metade da fortuna dos dois.

Tremendo de nervosismo ante seu olhar irritado, continuei a recitar alguns mantras mais apropriados a mim do que a ele no momento. Foi quando chegaram os homens.da polícia mental...

Prenderam Parabellus com cinturão de energia e me colocaram na geladeira gravitacional. Magos pessoais são proibidos pela XX Constituição brasileira. Com a agravante de ser menor de idade, ainda não completei oitenta anos.

Agora estou aqui, preso num garrote de dor. É evidente que tudo foi um plano da cadela da mulher dele para ficar com a fortuna. Mas não posso revelar a verdade. Será pior se souberem que meu nome é Arsene Lupin, o ladrão mais famoso do sistema solar. E que consegui roubar a arma com a qual, no século passado, o presidente Kennedy foi morto pelo meu bisavô.

Enquanto recito mantras, minha mente se aferra ao problema principal - fugir da geladeira. Como convencer os guardas de que devem me soltar? Escolho o que parece mais idiota entre eles e o convenço de que meu emprego principal é fabricante de clones e o Parabellus que prenderam é new-paraguaio.

O rapaz me olha assustado, mas chama o superior. Sou famoso por convencer pessoas. Preocupados, decidem desativar a geladeira gravitacional e me levar ate o milionário para mostrar porque tenho certeza de que é um clone.

Agora estão presos pelo cinturão. Eles não conheciam armas obsoletas e os rendi com a mesma usada por vô Oswald.

Meu único azar é que Parabellus. não só conhecia armas antigas, como era especialista em detectar ladrões universais e desativar cinturões. Sabia que não devia ter saído de casa hoje. Porque não acreditei nas predições de Avó Diná?

CINDY

Encantado amarrou o cavalo e desmontou com dificuldade.

Ia longe o tempo em que subia e descia do animal com a destreza de um bailarino. Agora as pernas finas não sustentavam o peso da barriga.

Estou ficando velho... - deu uma conferida no espelho do vestíbulo.. A bebida na taverna com o marido de Branca tornara vermelhas as bochechas e embaçados os olhos azuis.

Não pode continuar o inventário - dois anões quase o derrubaram, perseguidos por três meninos com espadas de madeira, numa gritaria infernal. Atrás deles vinha Cindy, o vestido arrebentando as costuras, um bombom agarrado à mão melada.

- Vamos parar com esta luta, agora!... Senão eu mando os anões de volta para Branca e proíbo a vinda deles ao castelo!... Tadinho, olha seus filhos!.. assim não dá!.. não tenho descanso nesta vida fabulosa!...
- Meninos!..
trovejou o príncipe com voz de barítono.

Os anões fugiram para baixo do aparador e os perseguidores estacaram, mantendo as espadas no ar. Depois se atiraram nos braços do pai antes de correr para o jardim.
O príncipe passou o dedo na cômoda empoeirada:

- Onde andam os empregados do castelo, Cindy? Isto aqui está uma imundície... e os garotos, ninguém cuida deles?
- Com o que você me dá, faço milagres maiores do que o gênio de Aladim. Estamos reduzidos a dois criados neste lugar enorme.. e ando tão cansada... -
abanou a mão gordinha em direção a ele – não tenho forças para nada...
- Pudera!.. não faz um pingo de exercício.. só levantamento de caixa de bombons e lançamento de íngua ferina contra maridos, com Branca e Cachinhos. Está cada vez mais gorda, darling...
- Ah, não fala assim, Tadinho, houve uma época em que você me levava nas nuvens.. lembra? E do tesão que tinha no meu pezinho?...

Levantou a saia comprida e mostrou o pequeno pé gordo e alvo.Os anões caíram na risada e o príncipe sentiu uma ligeira vertigem vendo se aproximar aqueles lábios roliços.

- O cavalo.. tenho que dar água e feno ao cavalo...
- Este maldito cavalo velho!.. Por que não compra um Land Rover como o do Lobo Mau? Aquilo é que é personagem chique, elegante, esbelto
– completou lançando um olhar de desdém para a barriga do marido.
- Verdade... mas ele come Chapeuzinhos novas todos os dias... - replicou sarcástico - Escuta aqui, Cindy, em vez de bancar a sentimental, podia preparar um banho e uma refeição para mim que estou cansado de procurar trabalho de príncipe sem conseguir. O desemprego anda terrível depois da subida do Sapo Encantado ao poder... e tínhamos tanta esperança...
- Você teve.. porque eu sempre soube que nem no País das Fábulas se acredita mais em histórias da carochinha....

Deu as costas e saiu irritada. O príncipe Desencantado ficou observando o traseiro roliço apertado no vestido gasto.

Não acreditou que um dia quase morreu por um sapato delicado de cristal daquela criatura.

Nem nos contos de fada é possível ser feliz hoje em dia.
imagem - pintura de Botero

Sunday, November 20, 2005

E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...Eu tenho a minha Loucura !

(Cântico Negro - Zé Régio )

O Tigre

E o tigre de mil bocas rolou, estilhaçando o solo.
(a cotovia cantou em algum lugar do Norte).
E a fumaça subiu enquanto assavam búfalos
(os galos fugiram do amanhecer, mudos de espanto)
E Pedro negou dez, Judas beijou quarenta,
(todos os jornais mentiram infinitas vezes)
E o ouro escorreu pelas mãos ávidas dos poderosos
Enquanto o tigre de mil bocas, faminto
Levantou seu dorso esquálido.
E com uma só patada,
destruiu, engoliu, arrasou
E comeu
Ricos e pobres, brancos e negros,
oceanos e nuvens
O tigre de mil bocas digeriu o mundo

Depois dormiu cem anos esperando o Messias.

Até eu acabar este cigarro

- Não, você não vai me impedir. Estou saindo.
Peguei minha cabeça, escolhi as melhores pernas (sempre adorei pernas) e levitei com o corpo roubado.

Ele me olhou. Quer dizer, tentou olhar porque a cabeça estava comigo e apenas virou o pescoço cego na direção do barulho que fiz ao me afastar.

Senti as vibrações roxas do ódio, mas nem liguei. Estava livre. Para alguma coisa serviram as aulas de desconstrução anatômica. Coloquei a cabeça no pescoço.

A planície de cogumelos humanos ia até o processador cinzento e compacto. Pequenos brotos de mãos surgiam aqui e ali, rosados e gordos. Pena eu não ter podido escolher melhores e mais jovens.
Não se pode ter tudo.

Voei um pouco e decidi descer. Sabia que ele não ia me seguir – destruíra todas as pernas e cérebros. Sem elas ele era apenas uma memória sofisticada em um feixe de músculos estúpidos. Estúpido. É o que sempre foi, achando que poderia me segurar. Deslizei pelo lago e uma certa saudade do tempo de nós brotou em mim.

“Espere até eu acabar este cigarro” – dizia a voz na ditadora antiga. Livros - eu aprendera. Cortazar.

- O que são cigarros? Perguntei.
- Comida de humanos - ele respondeu. Era mentira. Cigarros são drogas alucinógenas, Prometeus me contou. Estimulavam o cérebro. Eu quis cigarros, mas a máquina bios não conseguiu fabricar, só cria vida. Para que serve vida?

Meu tédio era absoluto e até a bios deixou de ser engraçada, quando matar me cansou. Qual é a graça da morte se não se entende a vida? Os seres tinham medo e provocavam amarelos bem bonitos, mas era só.

Prefiro o roxo do ódio dele. Libertei todos os vivos, mas antes fiz com que cruzassem entre eles. Humanos e animais. Depois coloquei todos no processador, bem lá em cima e abri as comportas.

Em breve teremos uma epidemia de seres vivos.
Mas eu estarei longe. Só o tempo de acabar este cigarro. Prometeus, me passa o fogo.

Tenho a minha Incoerência

Como se fosse abril

- Sim e Não - ele respondeu.
As palavras cintilaram no ar, provocando vermelhos imprecisos. Sempre diferentes e no entanto iguais. Devo acreditar em reflexos mutantes? Por que não? Se a beleza nos arrebata o que importa o real?
Antes poderiam ser pontos: de vista, de ajustes, finais. Dois pontos, interrogações. Nunca me detive na objetividade. Ele diria que é esta minha maior qualidade. Ele diria tudo, não há nada que não possa dizer, com seus lábios de espuma flutuante. Elogios, críticas, palavras de amor.. ah .. as palavras de amor!...
Por que você é tão carente delas? – ressoa em verdes orientais.
E eu sei? Não é esta minha maior qualidade? Não saber?
Sorriu, um marrom meio amargo... as flores ao redor pareceram encolher.
Devo modificar algumas coisas ou manter padrões aleatórios?
Nem adianta perguntar, sei todas as suas respostas, dentro da imprecisão dos azuis e violetas. Mas é tão belo o que me diz nas tardes mornas de Abril!... que importa o sentido?Não é assim que tem me ensinado?
Três pontinhos ignóbeis, interrogações que machucam, palavras vagas que dão esperança e limites – as fronteiras do não sei.
Eu quis suas cintilações e cores variáveis porque devo me preocupar com incoerências? Não era o que desejava? – a mentira do reflexo inconstante? Não vou chorar por espelhos, nem por retratos ou escritos.
Fui eu que escolhi a impossível certeza do Mutante.
E quero a vaga incerta do seu desejo. E o brilho violeta na noite que cai.
Ama-me agora. Ou sempre. Ou nunca mais. . Como se fosse abril.

Sunday, November 13, 2005

ENIGMAS

“Disse assombro onde outros dizem apenas hábito.” Jorge Luís Borges

O Espelho do Rei

O príncipe herdeiro de Aleph, na constelação Azul à leste de Andrômeda, tinha uma peculiaridade – era um obsessivo buscador. Ao contrário dos irmãos que procuravam aproveitar a vida, percorrendo bordeis e entornando todas as combinações etílicas, Malthus só se interessava por descobrir o sentido da existência. Para isto vinha gastando o tesouro do reino em viagens às mais distantes partes do Universo.

No terceiro planeta, que orbitava a estrela amarela de uma galáxia longínqua, ele, finalmente, encontrou uma resposta.

Malthus viajou por planícies e montanhas, navegou sobre mares azuis e suportou temperaturas geladas no seu corpo adaptado. Em algum lugar da Terra, diziam os livros antigos de Aleph, se escondia o maior sábio do universo - Ibn Al Said, o simples.

E ele o encontrou.

O deserto parecia escaldante mesmo aos sentidos do navegador corporal. Uma fina neblina de areia se levantava sob o sol, excessivamente próximo para os padrões alephianos, onde a noite se alongava por ciclos gigantes, o que favorecia a proliferação de adivinhos e magos.

Estava próximo de encontrar aquele que lhe daria a resposta esperada e seu coração batia.

A gruta era apenas um amontoado de pedras e sentado em frente a elas, o velho permanecia absolutamente imóvel.

Ligou o intercomunicador e perguntou com voz trêmula:

- Mestre?

O ancião não moveu um músculo. Repetiu a pergunta:

- Mestre? Ibn Al Said?

Nenhuma manifestação de vida. O príncipe sabia que esta não era a atitude habitual dos habitantes daquele planeta e ficou indeciso. Mas em Aleph paciência é virtude e Malthus era um obsessivo buscador.

Sentou-se ao lado dele e esperou.

Muitas luas cruzaram o céu noturno e o sol se levantou sobre a areia incontáveis vezes antes que o mestre respondesse:

- Sou eu

O príncipe, cuja nutrição, realimentada pelo navegador corporal, começava a ficar em estado de colapso, respondeu animado:

- Mestre, há anos eu o procuro, por milhares de planetas nesta galáxia, para fazer uma simples pergunta, que é a mais importante de todas – qual o significado da vida?

O mestre levou outras muitas luas para responder e quando o príncipe já quase desistia, no limite de seu traje adaptador, abriu a boca desdentada e emitiu apenas uma frase.

Depois, recaiu na posição de estátua, da qual não saiu mais durante todo o tempo em que o príncipe permaneceu lá, tentando entender.

O que significaria aquilo? Sabia que o mestre não iria explicar nada, cabia a ele descobrir.

Voltou para seu planeta e durante o resto da vida, mesmo após assumir o trono, dedicou-se a decifrar aquelas palavras enigmáticas. Consultou astrólogos de Júpiter, magos de Andrômeda, bruxas de Ashtar XIX, as mais poderosas do Universo. Penetrou nos domínios tenebrosos da bruxa de Pher, em fragmentos temporais distantes, onde quase perdeu a razão. Navegou pelo tempo e pelo espaço, procurou lingüistas de idiomas estranhos, até mesmo os tradutores dos guturais sons reptilíneos de Alighator. Nada. Ninguém sabia decifrar o significado da frase, muito menos o sentido da vida.

Quando, depois de quinhentos anos, sua própria existência estava no fim, continuava com a mesma interrogação sem resposta, a mesma angústia infinita.

Resolveu fazer uma última e desesperada tentativa, usando todos os recursos da ciência e da cosmetologia. Reformou seu aparelho biológico e apoiado por um ultra-sofisticado navegador corporal, viajou até o pequeno planeta, Terra, o terceiro a partir da estrela daquela galáxia distante.

Com suas últimas forças, atravessou o deserto e conseguiu chegar à gruta onde encontrou o mestre exatamente na mesma posição.

Sentou-se lado do velho e permaneceu calado algumas luas, as derradeira que lhe restavam na contabilidade do futuro.

Já mal conseguindo articular as palavras, finalmente se atreveu a perguntar:

- Mestre, passei a vida toda procurando, viajei pelos confins do universo, conheci seres de todas as espécies e gêneros, mas nunca, ninguém, conseguiu decifrar a frase que me ensinaria o significado da vida. E repetiu reverente:

“ da escada de alcebíades ao aeroplano romântico.”

As palavras ressoaram, através do intercomunicador, no deserto silencioso e estrelado.

- Gastei fortunas, subindo e descendo escadas, das simples às mais estranhas do universo. Através de pesquisa arqueológica aqui na Terra, consegui fórmulas da construção de aeroplanos diversos e neles procurei viver românticas noites e dias.

Tudo em vão. Jamais descobri o significado.

Agora que estou chegando ao fim da jornada, acho que mereço a resposta. Por favor, mestre, me diga o significado de tal frase.

Pela primeira vez, o mestre se moveu em direção a ele, uma silhueta escura contra as estrelas

- Querido rei, você olhou para o lado errado do espelho, ignorando o real pela imagem. Gastou o tempo de sua existência procurando o sentido das palavras e voltou sobre os próprios passos. No entanto, elas significam o mesmo que a vida.

E fechando os olhos do velho rei que agonizava:

- Nada.

Enigma

Ele sabia que havia uma porta, só não lembrava aonde. Na verdade, não tinha certeza se havia uma porta. Na verdade nem tinha certeza sobre algum dia ter tido certezas. A parede nua estava diante dele como um enigma. Para trás não era possível. Ou era? Não lembrava o que havia antes, se é que antes houvera alguma coisa. Bom, pelo menos a parede estava ali diante dele. Quer dizer, como saber se estava diante dele, se não tinha noção do lugar, da perspectiva em que se encontrava? Talvez ele é que estivesse atrás dela e, neste caso, era o obstáculo a ultrapassar. Mas ultrapassar porque? Esquecera o propósito. A única coisa que sabia com certeza era da existência de uma parede a sua frente.

Não. Nem isto sabia com certeza. Somente via uma parede branca, mas podia estar delirando. Seus sentidos podiam estar criando uma parede inexistente. Neste caso, estaria diante da possibilidade de uma parede real. Sim, isto podia concluir: havia a possibilidade de uma parede real. Ou não? Como decidir sobre a possibilidade de algo que não tinha certeza de existir? A partir de que dado concluíra a existência de uma parede branca? Via uma parede e parecia branca, mas podia não ser uma parede e podia não ser branca. Podia ser a continuação absoluta de um objeto plano que, do local onde estava, não era possível visualizar. Podia ter um tamanho muitas vezes maior que a sua altura e o que lhe parecia uma parede ser apenas a aresta de um triângulo.

Por que um triângulo? Não era possível tomar decisões precipitadas, tirar conclusões apressadas. Olha para cima e, realmente, a suposta parede/ângulo continua indefinidamente e definitivamente parece branca. Definitivamente não. Branco é a ausência de cor. Isto se ele estivesse falando de pigmento, se estivesse diante/atrás/ao lado de algo concreto. Mas podia ser a ausência do concreto. E podia ser a junção de todas as cores, se fosse luz. Na verdade, não era possível pensar em branco, como nunca fôra possível pensar em retas. Não existiam retas, só ilusão de ótica. Então estava diante/ao lado/atrás de algo que possivelmente era uma ilusão. E como supor uma saída a partir de uma ilusão? Se é que havia uma saída.

Se é que ele estava ali procurando uma. Se é que ele estava ali. Se é que ele estava. Supondo que ele existia. Supondo que não seja apenas a versão de uma consciência além dele. Que não seja apenas um personagem criado por alguém que neste momento tecla sua história. Que não seja parte de um enigma maior , de alguém que está agora pensando nele, diante de uma parede branca.

Ou será que não é uma parede? Ou será que não é branca?
Foto - Ivan de Almeida Junqueira
http://ivandealmeida.multiply.com/photos/album/15

Ponte Frágil

Ao redor apenas o quase murmúrio, líquido.
Todo o sentimento, mar profundo, um surdo tocando em algum lugar.
Tranças de prender, caverna escura, água salgada, intensa, vermelhos atemporais.
Terremotos, tsunamis, corredeiras, águas que arrastam lavas, mar ardente
Empurrado, puxado, despregado,
Enfim, vê a luz no fim do túnel.
Seu grito desperta a vida.
Ponte entre o silêncio e o espanto.

Espelho

Lá embaixo era eu - no reverso do poço.
Por que de todas as coisas que havia ao redor, as flores, o céu azul, o cheiro dos terebintos rebentando em volta, só minha pobre face era real - lua negra no fundo da água oleosa?

Porque de todas as coisas ao meu redor, o marulhar do rio, a árvore em frente, a janela de ontem, eu era dona de inventar.

Saturday, November 05, 2005

Núpcias

Vendaval de água barrenta

A cabeça na cômoda, cercada por suas conchas e fina areia furta-cor, anunciou com olhos de mar encapelado:
- As anêmonas floresceram perto daqui.

Olhei para ela e meu coração se alagou. Lembrava bem a última vez. O oceano brilhava laranja, onde o braço do rio Molah se enfiava como um amante. O céu pesava azul.

A cabeça iniciou uma canção romântica. Brisas africanas vieram em ondas sobre mim. Cabeça maldita! Do lado de fora, areia escaldava.

O mar permanecia calmo mas... o que era a espuma que se avistava onde o horizonte inaugurava o céu?...
Bobagens. Anêmonas não florescem duas vezes.

Apanhei um regador e comecei a molhar a cabeça. Ela riu, delicada, os olhos ficaram cor de jade.

- Acredite em mim.

Não respondi, ocupada em trocar a areia e lustrar as conchas.

- Anêmonas – ela repetiu com voz doce – enormes...
Recomeçou a cantarolar, com voz umedecida.

Sons percorriam a casa, vozes do crepúsculo. Por toda parte floresciam, sussurravam. Dediquei-me a limpar os móveis com óleo fino de Aslamabad enquanto a tarde morria.

A espuma na fímbria do horizonte estava maior. Ou era apenas impressão?
Abri as janelas, vasculhei o poente avermelhado. Areia e águas. Rio barrento correndo silencioso para o mar alaranjado.
O fio branca se tornara um dedo nos confins do avistamento.
Meu coração deu saltos, cavalo selvagem.

A cabeça fechara os olhos de água e murmurava baixo:
- Está vindo, está vindo...

Estrelas despontaram no céu - devagar, depois incrivelmente rápido, desabando sobre meu olho que vigiava a brancura, quebrando a escuridão.

- A-nê-mo-nas flo-res-cen-do - escandia a cabeça sobre a cômoda com voz rouca.

Eu me recusava a acreditar. Senti frio e fechei a janela apagando a lembrança da faixa alva sobre o oceano.
Entrei na casa deserta – o perfume de flor se acentuara. Meus seios doíam, os braços pesavam toneladas.
Subi, me atirei na cama e acreditei desaparecer na dor.

Acordei com a voz esganiçada da cabeça na cômoda. Chovia ao redor de mim.
Desci e encontrei tudo boiando na lama escura.

Ela repetia, como um disco quebrado:
Anêmonas floresceram perto daqui, bem perto daqui...anêmonas...

Apanhei um balde para conter a inundação, tentando não olhar pela janela.
Mas olhei.

A lâmina branca se tornara uma onda gigantesca avançando para a casa, vendaval de água barrenta e azul, com mil olhos, tentáculos semi-ocultos pela névoa formada por gotas iridescendentes

Fechei os olhos e Ele entrou.

Como antes, espatifou a cabeça sobre a cômoda, espalhou a areia e as conchas pelo chão e me derrubou no seu leito de mar.

Tomou meu corpo, me inundou, me transformou em água escorrendo por todos os bueiros, todos os rios, lagos, fontes e mares no mundo, me pediu em casamento de oceano.
Eu desagüei por dias, até Ele partir.

Quando se foi, arrumei a cabeça na cômoda, coloquei de volta conchas e areia. Ela estava muda.
Anêmonas murchas boiavam na água restante.
Varri, espanei, lustrei. E morri de amor.

Anêmonas florescendo perto daqui

Anêmonas murchas boiavam

Ciclos

DESENCONTRO

Quando chegar até mim, me avise
Eu não vejo você de perto
A distância existe quando não quero
E quando você vem, não estou
CICLO

Mais um tijolo
Na minha construção
Que desmorona
sempre.




Poemas - Barbara Bandeira Benevento ( minha filha )
Imagem Desencontro - Leonor Fini

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