Ficava assim, braços levantados, mãos espalmadas, vento desarrumando o vestido. Magrinha, galho de árvore, gostava de sentir as gotas, no alto do morro, cabelos voando.
Bastava a chuva se anunciar nas montanhas e ela sumia de casa, aguardando o vento para girar até a tontura boa se apoderar dela e derrubar o corpo na terra molhada.
“Menina aluada, nasceu em noite de eclipse, ficou assim, sem juízo..”
As comadres se benziam quando passava, expressão distante. Não brincava com as outras, sua única alegria era encontrar o vento.
Castigos, prêmios, nada adiantou. Ao primeiro sinal, lá estava ela, cata-vento a rodopiar no meio da tormenta.
Prende-la em casa nos dias de chuva, só aumentou o desejo. Consumiu-se em doença maligna que nenhum chá ou mezinha conseguia curar. O doutor da capital, chamado às pressas, diagnosticou: “é febre nervosa, a menina não tem nada, só tristeza.”
“É quebranto - concluiu a vizinha, doutora em ervas, sabedora de coisas do coração - Deixa a garota livre, mal não faz, se encontrar com o vento, é coisa dela, de escolha antiga.”
“Coisa de filha do eclipse” – sussurravam os vizinhos.
Acabaram se acostumando e guiavam a projeção do tempo pela inevitável caminhada “pode tirar a roupa do varal, que a filha do vento passou pra cima, vem chuva na certa”
Ela, indiferente a tudo, girava, girava, cada vez mais forte, mais rápido, um pequeno e leve pião de carne.
Um dia, homens de longe chegaram.
Mal-encarados, a ninguém cumprimentavam em seus carros velozes. Subiam na direção do cume dos ventos, mas não era a eles que procuravam e sim coisas misteriosas, escondidas nas grutas. O povo falou um pouco, depois calou.
Continuaram suas vidas pacatas, deixando ao mal o que era do mal.
Quando a tormenta rugiu pela primeira vez naquele inverno, a filha do eclipse foi interceptada por mão grosseira – “aqui ninguém passa.”
Lutou, tentou se esquivar, foi jogada rudemente no chão.
“Sai fora garota, pro seu próprio bem... chispa daqui, já!... “
Fitou os olhos frios e voltou, lágrimas salgando os olhos.
À noite, o homem, agachado junto à fogueira na entrada da gruta, viu o pião humano no alto do morro.
“Pestinha! Eu avisei”
Ajustou a mira e atirou. O vento deu um suspiro.
O frágil pião cambaleou, quase caiu, mas continuou a rodar, agora mais lento, levantando reflexos na chuva.
Atirou outra vez, mais outra, numa raiva insensata contra a pequena filha do vento.
Ela caía para um lado, para o outro, perdendo força... mas continuava a girar, sangue se espalhando em volta, chuva de paetês, bonito, bonito... e girando, e girando, o temporal empurrando seu corpo, sem parar, sem parar...
O homem atirou, atirou e atirou.
E a cada vez, o cata-vento ferido cambaleava, ameaçava cair, depois voltava a girar, girar, girar, alegre como uma risada de menina, como o gosto da infância perdida, até que as balas se acabaram, até que ele, vencido pelo cansaço, os olhos quase fechando de sono, caiu sobre as preciosas mochilas.
A última coisa que viu foi o frágil giroscópio, rodando no vento.
Oferecendo-se sensual Rompendo a casca escorrendo nos seios Até o sétimo sinal Meu gesto rasga a pele protetora do perigo animal a envolver a língua e toda a fácil luxuria manual suave ao toque do meu dente ávido enfim completamente acida e brutal sugando restos de seu sumo espesso mortal.
Ela chegou iluminada. Cheirava a pecado, toda trêmula de susto e de tesão, a culpa escorrendo pelos poros como mel.
E a gente bebia as palavras do errado com delícia.
E o não devido, o proibido se tornava para nós elixir suculento e sorvíamos as palavras, a serpente subindo pelas pernas, calor afogueando os braços nus.
Era verão ainda por cima, o inferno parecia mais próximo da pecadora e como queríamos arder também no caldeirão!
Ela falava - o peito arfando, a voz velada de desejo, o medo percorrendo o cio.
Nós escutávamos com os dedos trêmulos, bebíamos a história alheia com volúpia. Era nossa guia no caminho da transgressão e ouvíamos caladas, vivendo seus meandros, aguardando um desfecho que nunca vinha, o castigo temido e ansiado para afastar aquela idéia perniciosa de que era possível ser feliz errando.
Os corpos suados de meninas esperavam cada minuto do relato com coração suspenso. E ela nos guiava pelos igarapés do erro nas certezas sábias de paixão. Nossa lanterna no rio escuro do desejo era a carne trêmula e o olho aceso dela conduzindo o barco.
Temíamos o naufrágio? Sim, temíamos. Mas parecia tão forte estar ali ouvindo o despenhadeiro, percebendo o eco da garganta perigosa que nos esperava. E escutávamos tensas de safadeza, lânguidas de culpa, o mal-feito alheio.
Quando os adultos chegaram, desfazendo o encanto, cada uma de nós já se tornara, irremediavelmente, uma rebelde mentirosa.
E sabíamos, para o resto da vida, que o pecado tem mérito.
Ele me invade Não como conquistador Cabral de terras virgens Iinvade-me Como a música de Billie Sonora e triste Deixa esta marca singular Quem sabe o amor existe? Invade-me depressa e lentamente Como se a verdade Fosse a voz rouca e intensa Do acidente
Quem iria imaginar que íamos nos encontrar de novo no Enchanted!
Depois de tanto tempo, em que a simples menção do teu nome era suficiente para fazer desabar os céus e emergir serpentes carnívoras do seio da terra, estive afastada dos nosso lugares. Não queria te ver com outras, não queria aprofundar o corte, derramar cal nas feridas.
Sabia que este dia fatalmente iria acontecer. Nem o Encantado é tão pequeno que eu não possa fugir deste encontro, nem tão grande que nos garanta esconderijo infinitamente.
Eu escolhi, eu desejei, eu acreditei que teria forças para resistir. Tua voz estava tão longínqua para mim quanto as palavras eram mentirosas. Teu corpo tão distante quanto o amor era falso.
Quem podia imaginar que iam tocar aquele tango!.... E que, com a incapacidade de perceber a sutileza, com a coragem dos insensatos, com a cara de pau dos bêbados, irias me tirar para dançar.
E que o nosso corpo iria responder de ouvido, que íamos ficar ali, parados, assistindo cada fibra, cada poro, cada gota de suor reagir quimicamente até causar a explosão de sempre, a reação do nosso impossível reagir. Saímos dali, perdidos, para o motel Beira-Mar e tudo que houve esteve sempre escrito na inumerável eternidade.
E no entanto tu ainda és o mesmo e eu sei disto.
Teu trabalho é a jogatina, a sorte nos ases e as damas de paus e de pedras que arranjas nesta vida de vadiagem.
Vão continuar o Ali Babá e suas mentiras, escondendo as clamorosas infidelidades que eu sempre perdoei, sempre desejei não ver, para poder te encontrar, meu moreno, nas noites do nosso amor, nas esquinas escuras da minha alma encharcada de pecado.
Por um prato de lentilhas , vendi meu sossego, mas inúmeras vezes valeu a pena, ah valeu a pena!...
Nossa história é assim, de vácuos e estrelas, de buracos negros e super-novas. O importante é que nos encontramos por alguns meses, ou anos. Ou mesmo por alguns minutos.
O importante é que apesar de tudo que nos separa, do ódio que nos desuniu, das mágoas que me perfuraram o estômago, das cheias que sublevaram de tristeza meu coração vagabundo, dos maremotos e tempestades de areia, apesar de tudo que é hoje uma Índia distante, estivemos juntos.
Em alguns instantes mágicos e incorruptíveis, estivemos assim. Juntos. Profundamente.
O vento me contou que os lilases floresceram - disse a cotovia caída no chão duro. Os fios responderam tremendo. Portas rangeram sob o peso do inverno. Lilases, lindos - repetiu a cotovia com voz fraca. O telhado se curvou, enregelado. É primavera, o sol canta em beirais - a cotovia insistia, quase sem forças. Um punhado de gelo caiu da árvore seca. Trespassou o coração e calou sua voz.
Lilases floresceram na primavera muito tempo depois.