Sunday, March 26, 2006

Fábulas Urbanas


“Os habitantes voltam a recitar as mesmas cenas com atores diferentes, contam as mesmas anedotas com diferentes combinações de palavras, escancaram as bocas alternadamente com bocejos iguais”

(As cidades Invisíveis, Italo Calvino)
Pintura: Leonor Fini


A estupidez do gnomo




Apareceu outro gnomo no jardim.
Estão vindo mais cedo este ano. Nem esperaram o início da primavera. As flores ainda não despertaram de suas camas coloridas.

Ele está encarapitado no pontal da varanda e seu olhar me interroga.

Que posso responder? É claro que está tudo bem. Porque não estaria?
Não acredita em mim e seu sorriso sardônico me aborrece.

Por que os gnomos são tão sarcásticos?

Estou dizendo que sou feliz e tenho certeza. Por que mentiria aos pequenos?

O marido se foi, é bem verdade, mas de que me servia um beberrão, um pobre fracassado que só fazia dormir e não sabia cantar uma canção mais doce?
É bem melhor sem ele.

O maldito não acredita. Deve estar lembrando dos meninos.

Eles se foram, vou reclamar? O caminho da vida é este mesmo. Queria que guardasse meus filhos debaixo das saias como uma ostra egoísta impedindo seu vôo? As asas estão abertas longe de mim, mas ouço seu rufar macio nas noites silenciosas. E estou feliz por eles.

O gnomo gargalhou.

Está pensando no tempo que me arrebata? Tudo tem seu momento. Não posso ter mais a beleza antiga. Estas rugas são vida e o cabelo tão ralo já nem me aborrece mais. Encontrei uma paz neste outono tranqüilo.

Ele me olhou malicioso.

Quer saber do que mais? O tempo que passou levou muito de mim, mas me deixou inteira. Estou aqui ainda, no mesmo lugar

Parei estarrecida.

O gnomo saltou, deu piruetas e se encarapitou de novo no banquinho cantarolando com a voz anasalada:

“No mesmo lugar... no mesmo lugar...”

Matei mais um gnomo, devo confessar.
Eu sei que sou feliz.
Gnomos são estúpidos.

Mas é melhor não deixar mais nenhum pra encarar.
CINDERELA VESPERTINA


Pintura - Tamara de Lempicka

Escuridão profunda, apertar de olhos, reconhecer Raposa Prateada.

De passagem, espelho na luz rosada do abajur - cabelos negros emoldurando o rosto pálido, susto de tesão e medo. Com força e sedução, boca vermelha, pestanas de rímel forte, batendo, pássaro arquejante.

Ele sinalizou com o isqueiro, sorriu de leve, dentes brancos, mal de amor. Lentamente despindo - o casaco, a alma, o real.

A mão pesando nas costas nuas, pecado do improvável, flor da ânsia de enfim morrer. De amor. Dançar era agarrar-se ao febril suspiro do outro, perder-se na carne alheia, embriagadora mistura de odores, suores, hálito forte de verão eterno. E rodopiar na música de ontem, encantar-se de novo, fada de seu próprio destino, carruagem. E percorrer caminhos de castelo.

Eu sei que vou te amar... por toda a minha vida eu vou te amar

A música é saber da mentira, é querê-la toda, inteira, apertando as coxas nas pernas fortes ah, meu amor...

Voz que sussurra líquida no ouvido, boca roçando a orelha nua, pelada, despida de todo o pudor, mente pra mim, me diz as sacanagens que eu adoro ah meu amor, mente pra mim.

Enlaçados no engano, musica escorrendo em volta, dentro, saturando, perfume de gardênia, me ensina aquele tango, você vem?

Por toda a eternidade curta na escuridão do instante, unido sexo, borboleta febril, seu peso sobre mim, quando será? talvez jamais. Mas não importa, amor. Vamos então? até que a hora escorra pelo ralo, até que a carruagem vire abóbora. Até o momento, faca do real.
Tenho que ir... Quando te vejo de novo? Sempre, nunca, talvez, tenho que ir.

Sapatos resvalando no chão liso, pressa de não perder. Sou prisioneira. Mais um beijo de longe, a calçada, chuva fina e fria, luz que ofusca, táxi, teu cheiro, limpar os olhos, a boca, o corpo, voltar a ser ninguém.

A porta entreaberta, mortiça, televisão ligada.

- Demorou...
- Vou fazer o jantar, trouxe a cerveja.

Arroto satisfeito, barriga salta da calça.

- Serve pra mim. Vou comer aqui mesmo, vendo o jogo.

Carniça de fritura, trapos rotos, roupa cai devagar.

Madrasta assassina a fada, apunhala a madrinha, derruba a carruagem e enterra o coração.Nem sapato deixou.
CIGARRAS GIRLS

Eu estava nervosa.
Não devia, mas estava.
Por causa daquela imbecilzinha, daquela nada, daquela... cantora de quinta! Eu, Elizabeth Ant, a todo–poderosa proprietária da Antena ( Ant Extraplanetária – Novidades e Artistas ) detentora do contrato dos maiores sucessos da atualidade na maior parte dos locais da galáxia.

Adicionei três copos de modificadores comportamentais à água e continuei com ódio, agora plácido como as nuvens que passeavam na paisagem do teto.

Impossível esquecer o passado. As três cantoras do Cigarras Girls ( nome ridículo escolhido pela vagabunda, claro, naquela época ditava as regras – era bonita, jovem, e cantava bem ) que ódio! das três supostas cigarras, a única digna do nome - voz belíssima, soprano cristalino, sem um tremido, um falsete.

Agora deve estar uma taboca rachada. E destruída, com a vida que levava Piranha! tivera mais uns três maridos desde Ronaldo e mais de mil amantes

E eu, que me mantenho casta, nunca esqueci o olhar dele, a adoração enquanto cantava obrigada a assistir cada pincelada da paixão formando o quadro anunciado, rangendo os dentes, impotente, morrendo de amor e de ciúme.

Eu nunca fora bonita, éramos duas cantoras feiosas fazendo contraponto para a diva - cabelos negros, olhos de oceano, franjado de cílios grossos, sempre tivera tudo Por que precisou sapatear sobre o meu amor? vagaba!

Não que tivesse nunca me encarado, éramos tristes acompanhantes para sua cena, ajudantes de vida para que brilhasse no palco dos corações masculinos. Um dia cansamos de ser paisagem. Ou foi ela que nos enxotou? Faz tanto tempo.

Saímos feito ratazanas pela porta dos fundos, enquanto ela subia na carruagem de Cinderela. Assisti da calçada ao casamento deles, li cada revista, recorte de jornal, vi as entrevistas, as fotos, as reportagens na estereovisão.
Deixei que o punhal me trespassasse até o fundo para ficar curada. E fiquei.

Mas hoje... hoje ela está viciada, sozinha, sem dinheiro, sem fama, sem nada.
O mundo dá voltas. E eu vou ouvir suas lamúrias, saborear cada uma das palavras suplicantes, os olhos pisados, me deliciar com a pele manchada, o corpo demolido.

Vou escutar a voz rouca e delirar de felicidade. Eu que estou no topo. Eu que poderia transformá-la outra vez em uma celebridade muito maior do que jamais.

O teletransportador apitou, permiti a visita. Era meu dia!.. MEU!

Ela entrou. O ambiente iluminado com seu olhar. Nem uma grama mais gorda, nem um pouco mais velha.

- Oi Beth... - a mesma voz inesquecível – ... há quanto tempo...

Fechei os olhos e vi as multidões delirando a sua passagem, o sucesso insuperável que fazia no meu coração... toda a paixão voltou como no primeiro dia.

- Oi Cigarra... consegui dizer, rouca de amor

Sorriu do velho apelido, ficou mais próxima.

- Está disposta a trabalhar na Antena como exclusiva? Ela suspirou, abriu os lindos lábios rosados e eu renasci.
Hoje é meu maior sucesso – Phenix – conhece? Ma ra vi lho sa!

Moral da história – Já não se fazem mais cigarras e formigas como antigamente

Monday, March 06, 2006

CATARSE

“O fato é que esta vida é uma quinta
Onde se aborrece uma alma sensível”
( Pessoa / Álvaro de Campos )
Pintura - Francis Bacon (Head)


Marte no Coração


Desligou o rádio.

Coração estava longe dali. Em um ponto de fusão para o tédio, queimando sem motivo.

Tudo estava perfeito e no lugar. O bule cantando na cozinha, seu homem no jardim cuidando das flores. Por que Marte crescia dentro, lembrança desesperada?

Arrumou os cabelos e saiu para o sol. A nuca bronzeada aparecia entre os fios grisalhos. Curvado sobre as flores, mexia na terra, com amor. Como fazia com ela, tantas vezes, sempre igual. Marte se tornou enorme, oprimindo o coração.

Cansaço, milhares de pratos, panelas e copos rodopiando, bailado perfeito. O cheiro de jasmim ficou quase insuportável. Naquele tempo em que era possível acreditar.

Cabeça doía, luz incomodava os olhos. Pisou de leve no gramado se inundando de azul. Por que não podia retomar a emoção? Recomeçar a música?

Entrou de novo na sala escura e Marte avançou gigantesco, incomensurável, sufocando, destruindo lembranças. Marte, absurdo, inesperado, sonho distante do impossível. Marte e a casa silenciosa. Um rio de ilusões perdidas, cotidianamente esmagadas na sua boca amada.

Olhou cada objeto, a cama, a mesa, o fogão. As prateleiras de livros, o som, o piano. A concha e a colher, caneca e escova de dentes. Os CDs arrumados na ordem. Marte evoluía no seu corpo. Empurrava tudo, destruía.

Ele voltou e sorriu. Ombros cansados, olhos antigos.

Apanhou a arma carinhosamente. Destravou o gatilho, colocou no peito, onde o coração sumira.

Marte explodiu, finalmente, em mil pedaços
Pintura - Milton Sobreiro



Numa tarde com gatos e uma canção


Você abre a geladeira e o ovo está lá. Único sobrevivente do pesadelo.

Longe alguém canta em surdina:

Minha vida que parece muito calma...

Você reconhece a música - CD da Betânia, milhas navegadas para trás.
A voz continua docemente:

tem segredos que eu não posso revelar...

Você sabe que tem.
Olha o Ovo com certa ternura.

Fecha a geladeira. Lá fora o sol em gatos preguiçosos, chão quadriculado de sombras. Brisa ultrapassa a janela e cortinas voam.

Você pensa fortemente em verões, mas segura a lembrança nas pálpebras com mão febril.

De alguma janela basculante e suja:

escondida bem no fundo de minh’alma...

Você pensa: o que é alma?
Numa esquina qualquer, a buzina.

Você senta na mesa, alisa o pano quadriculado - azul e branco, como o uniforme do colégio. Onde andará Madre Teresa?
Morta e enterrada.

Abre a geladeira. Não tem fome, não sente nada. Olha o ovo em sua brancura gelada. É você.

não transparece nem sequer por um olhar...

Um olhar para onde? Quem iria procurar na íris castanha? Ninguém telefona, ninguém. A voz doce continua, quase Betânia, você pensa: é bonito...

Anda sempre conversando a sós comigo...

Você continua a música baixinho, mão na porta, bafo gelado vindo da luminosidade:

uma voz que eu escuto com fervor...

O sol aumenta seus domínios sobre o assoalho. Um gato miou.

Você pega o ovo, o último pedaço de pão.
Fecha a porta suavemente. Deixa o ovo na mesa e volta para apanhar as gotas.
Coloca muitas, todas.

O sol alcança o tapete puído. Os gatos se calaram.

Transformou meu coração em seu abrigo... e dele fez...

O Ovo rola lentamente pelo encerado.

Você fecha os olhos.
Ele se espatifa no chão

um roseiral em flor...

Você nota como a gema se espalha suavemente alcançando o sol.
E você cai.


CAÇADOR MALDITO


Ele me deu o Cruzeiro do Sul.

Depois as Três Marias, constelação de Órion - Mintaka, Alnilan e Alnitak, ele cantou, céu poeirento.

Betelgeuse, era doce na língua, ombro direito do caçador.

Mais brilhante de todas, não se pode apontar, ela é Sírius – repetia, fingindo respeito e roubando meu ar - de Cão Maior, acompanhante. Eu nos seus passos, seguindo a sombra, céu desabando, era verão.

Foram tempos de estrela, coração cravejado, cerveja e suspiros.

Ele não era de despedidas. Partiu levando no bolso Betelgeuse, dor de Cão maior. Eu caçadora, Mintaka, Alnitak, Alnilan, te perdi.

Afoguei três Marias no mesmo copo e esqueci o cominho do Sul.

Sobrou o Cruzeiro.


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