Friday, October 20, 2006

Ferocidade

Ah, pensar com delicadeza,imaginar com ferocidade.

Porque eu sou uma vida com furibunda melancolia,
com furibunda concepção.
Com alguma ironia furibunda.
Sou uma devastação inteligente

(Herberto Helder)

SISENÊG

“quem nos cria, nos mata” (helena)



Com Sua fome insaciável, Sua vontade absoluta, Seu poder total, iniciou a procura e a colheita.
Varreu galáxias, o Olho que tudo via, vasculhando o longínquo dos Universos.

Selecionou os paralelos ,os convexos e os côncavos, os geométricos e os não-matemáticos, os que se resumem a instantes fugidios, cujo tempo era tão rápido que só mesmo Ele poderia visualizar. E aqueles tão lentos que se transformavam em falsa eternidade.

Os de boa-vontade, onde a felicidade parecia reinar serena e o tédio se instalava. E os que se digladiavam em busca da verdade, como se existisse uma.

Mundos infinitesimais que moravam dentro de maiores que encerravam outros incontáveis mundos em seu sangue espesso. Na torrente misteriosa de seus meandros.

Os que se ocultavam nos desvãos do tempo, nas dobras do instante. Nas regiões mais insuspeitadas. Na fímbria do Nada.

E preparou todos com carinho, jogou uns contra os outros, cortou, formou maremotos, criou lavas, esmagou pequenos, estilhaçou grandes , pulverizou galáxias, rompeu estrelas, quebrou planetas, ferveu universos.

Então abriu a incomensurável boca com sua fome sem medida. Triturou, esmagou, misturou e enguliu.

Durante seis dias agonizou, envenenado pela sua criação.

No sétimo, Deus morreu.
Pintura: Leonor Fini

MALA ALMA


Arrumou a mala, separou os vestidos mais lindos, maquiagem de estrela, cabarés.

Contornou os olhos com lápis escuro, ressaltando o brilho, rímel, purpurina nas pálpebras, saudade... mas é carnaval, não me diga mais quem é você... um dia eu vou sair daqui para bem longe, lembra da canção?

Pés cravados na terra, crestados, um som de atabaque, pretos velhos descendo, dançando como figuras negras ao redor do fogo... noite de Veneza, máscaras... mas é carnaval, não me diga mais quem... coração bobo, terra roxa do cacau , do café, milho, mandioca, a infância correndo atrás do pião. Vou embora.

Colocou cada pedaço de jornal velho, recortes, figuras, palavras, cada anúncio, convite, papel rolando no vento, brisa de maresia, lembra da canção? Mas é carnaval não me diga mais... Não diga nada. É adeus.

E um pedaço de fita, um cachorro de louça quebrado, ventarola amassada. Bola de ping-pong queimada por cigarro, uma noite de lua, beijo roubado, tua boca, ah tua boca de mel e de pecado, tua boca que um dia... mas é carnaval não me diga mais quem... separou os mãos, lindas mãos masculinas que acariciavam, colocou os pés que fugiram, a boca mentirosa, os olhos fingidores.. mas é carnaval não me diga mais... nunca mais... a música alucinante a banda, o sax, o batuque, milhões de pomba-giras dançando ao meu redor. Viajar.

Colocou o corpo amado, a fantasia, máscaras de cetim, teu nome, ah, teu nome que esqueci... mas é carnaval não me diga... por ti vou embora... mas é carnaval... não é mais.

Em cima de tudo a alma, bem passada e engomada.

A mala derrubou a cadeira, furou o assoalho, afundou na terra - terra crestada, milho, algodão. A mala atravessou a rocha, o lençol freático, as camadas tectônicas, trespassou o planeta, mergulhou na imensidão escura.

Alma pesa demais. Demais.

Pintura: Leonor Fini


De lavanda

O sexo gemeu mas as pernas andaram, direção do certo.
Olhar perdeu o rumo, deu cansaço, cólera, peste, vitiligo, coração parou.
No rastro fui chegando, entorpecida.
Dei de beber, fumar, dei pro rei, a rainha, os valetes, perdi seu amor e agora este perfume.
Sem rumo fui vagando, entrei em lupanares, fiz força de salmão, enfrentei corredeiras, andei fora dos trilhos e todo trem me pegou.
Lavanda, lembrança que enterrei bem fundo nesta cova.
E piso no teu corpo, sapateio no tumulo.
Porque o amor é feroz, ah é feroz quando brota e se rasga.
Canalha em suspensão, meio-dia de meias.
Cuspo em ti. Porque o amor é feroz ah é feroz, coração

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