Sunday, February 04, 2007

MEMÓRIA

“Como cavalo morto que a maré inflige à praia, volta a meu coração”

(Jorge Luis Borges)



imagem: Leonor Fini
Mardeley, no verão

“Last night I dreamt that I went to Mardeley again"



Parece estranho lembrar do presente.

Os dias de verão não escorreram para nenhum lugar, permanecem. Cheiro de maresia, barcos que escapam em direção ao sonho, as fitas do chapéu embaraçadas por causa do vento e você me dizendo: linda. A água brilha no seu cabelo que cai na testa, eu sorrio e respondo: bobo. Havia, há, conchinhas brilhantes em Mardeley. Fazemos coleção perto da pedra grande, você esconde a mais bela. Troca por beijos, a rocha é quente, seu rosto também. Finjo estar zangada, arrumo os fios de onde caem pequenas bolhas de água. Passo os dedos de leve neles e Mardeley gira.

Tento uma oração, Deus me ajude, ele não ajuda. A noite escorre negra em Mardeley o mar bate nas pedras uma, duas, três, mil vezes. Então me viro na cama e peço um comprimido.
Finalmente! - alguém diz. A voz envolta numa bolha. Pego o copo sem tremer. Ao meu redor Jean Claude ri, esconde as conchas.


- Ela acordou?

- Mais ou menos. Pensa estar em Mardeley

- Mardeley? De onde tirou isto?

- Sei lá, coisa de maluco.

A areia fina escorre nos meus dedos. Está quente: você diz. Segura minha mão. Depois me beija. Sua boca tem gosto de sal. O mar brilha forte, fecho os olhos para não me afogar. Então você apanha as conchas todas e me entrega. O sol é forte demais em Mardeley, talvez eu esteja tonta.

A voz borbulha num oco pastoso:

- Margarida?
- Ela não atende assim. Marguerite?

Abro os olhos e encontro outros, severos, cruéis:

- Sabe onde está?
- Em Mardelay
- Não, no Sanatório Santa Isabel. Pare de fingir. Você não é louca. Não existe Mardeley

- Como tem certeza?

Jean Claude se aproxima por trás, fazendo sinal com o dedo sobre os lábios. A maresia está forte e eu resisto ao desejo de rir.

Os olhos cruéis se fecharam, corpo caiu sobre a areia quando a pedra atingiu a cabeça.

- Você não o matou, Jean?
- Não. Está só adormecido. Quantas conchas mereço?
- Dez - respondi sorrindo.


Seu cabelo molhado. e brilhante. Uma gota de suor escorreu por meus lábios.
Faz muito calor em Mardeley no verão.
O CARA DO CONTRABAIXO
em algum lugar do passado



Ele tirou o cigarro da boca, bateu no cinzeiro, tocou de leve as teclas e perguntou:

- O que você quer?

Ah eu queria muito mais do que uma simples música, ele sabia bem, mas era esta mensagem não dita que, antes, tornava mais denso o laço que nos unia.
Engoli em seco e respondi:

- Cole Porter

Sorriu, colocou o cigarro no canto da boca e começou... tocando as teclas devagar, amorosamente, como me preparava para o amor.

A música, nossa música.

Acompanhava o ritmo com a cabeça, com os pés, com o corpo (e eu também seguia atrás) inundando de tons a tarde clara.

O apartamento estava escuro contra a luz que morria lá fora. Permanecíamos assim, unidos pelo som. O contrabaixo esquecido em um canto, hoje era dia de piano, dia de percorrer rios e cachoeiras.

Nós. Silhuetas caladas, mas tão unidas que uma simples palavra quebraria o encanto.

Cole Porter.

Ele terminou a nota macia e me agarrou. Me pegou com violência, como era seu feitio quando mais estávamos perdidos de paixão.
Me empurrou contra o piano, levantou minha saia e me fez percorrer outras cachoeiras, me fez derreter em outros rios. Calados, nos amamos, machucando teclas, gemendo apenas, na escuridão que se adensava.

Então , ele me largou de repente, apanhou o contrabaixo, andou até a porta, pegou o maço de cigarros sobre o piano, olhou longamente para mim, como se decorasse cada detalhe e saiu.
Foi embora, para nunca mais voltar.
POEMAS

José Maria Monteiro de Paiva


A Camisa


A camisa foi deixada sobre a cadeira
Porque existe a hora e
então
Ela é bandeira da qual se quer vitória

A calça é deixada sobre a camisa
Porque se quer o agora lembrável.

Adreços, maneiras, brincos, jeitos, sei lá
São alijados
Porque se quer do fundo da vida
O olhar vermelho saciado.

Porque se quer o retorno amplo do momento morno
A camisa é retomada e vestida
E porque se quer a vida,
É mal abotoada.


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CASA NOVA


É somente o tijolo chegando,
o corte e o aterro,
e a explicação feita a terra que não se sabe se consente,

a alegria da alvenaria branca crescendo
ante o funeral do levemente assassinado.

A lareira pensada aquece o corpo e a esperança,
e o musgo, o cogumelo, a hera, a urtiga, a samambaia,
o boldo, a violeta e a piteira se entregam calados.

Quaresmas, acácias, cidreiras, ipês, azaléias
permanecem lá ou recolocadas
e quase sombreiam o anteprojeto risonho.

Assim se faz a casa nova,
com pequenos beijos e pequenos crimes
retardando a morte da esperança.


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BALADA PARA MARIA


Se os oceanos do teu olhar
Avolumam distâncias e podem afogar
são também trajeto bom
para quem goza a certeza do rumo

Se teus cabelos e pelos
são florestas que enredam e confundem
são também
ninhos de pássaros
chão das mais belas flores e dos mais doces frutos


Se tua boca e seus dentes
são fonte de dor das mais variadas formas
são também fonte de pesada saliva
que move incomensuráveis moinhos dentro da alma

se teu corpo
é formado por montanhas e vales aonde se cai e se fere
é também solo que se fertiliza
e aonde se morre e se renasce


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DIZ MAIS VIDRO

(homenagem a Seymour Glass de Nove Estórias do Salinger - seu alter ego)


Diz mais água
Diz mais porto
Diz mais verde
Diz mais morto
Diz mais brilho
Diz mais ouro
Diz mais carne
Diz mais couro
Diz mais duro
Diz mais fundo
Diz mais faca
Diz mais mundo
Diz que a vida
Já passou
Diz que a vida é só um passo
Diz que o corte
É só ruido
Diz mais vidro
Diz mais vidro

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“Sinto o pavor da beleza; quem se atreverá a condenar-me se esta grande lua de minha solidão me perdoa?"

Jorge Luis Borges

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