Saturday, October 20, 2007

RUINAS CIRCULARES


Imagem: Jacek Yerka


“Con alivio, con humillación, con terror, comprendió que él también era una apariencia, que otro estaba soñándolo.” ( Borges)
Foto: Jonathan Campos ( Gazeta do Povo)


MORTAIS


Lokus experimentou o terreno com as sapatilhas de servente-superior.
Era áspero o solo do deserto, as solas reagiram com desagrado.
Lokus era capaz de sentir desagrado.

Teria que continuar, fugindo dos seus donos, após espatifar a sopeira Luix XV.
Como poderia manipular objetos de louça quando treinara com terrinas e copos de aço e vidrex? E a culpa fôra da patroa mudando a mesa de lugar.
Os humanos têm mania de modificar padrões estabelecidos e quem sofre são os robôs domésticos.

Ruminando estes pensamentos, Lokus andou horas. Precisava escapar da reciclagem que esperava os andróides mal ajustados.
Alguns robôs consideravam a reciclagem uma forma de ressurreição, mas ele tinha certeza de que nada restaria de sua consciência anterior.

Ser humano significava errar, sofrer e ter medo. Logo, ele, Lokus, era o mais humano de todos, capaz de espatifar terrinas e fugir.

O céu estava tinto de vermelho quando começou a ver sinais de construção no horizonte. Um povoado pobre, castigado por solo seco e sol forte, sem nenhum dos confortos da civilização. Era como voltar ao século XX.

Lokus ficou aliviado. Aqueles homens jamais o reconheceriam como andróide.
Andou pelo calçamento irregular, enquanto olhos desconfiados o seguiam.

Suas roupas de plastileno, sapatilhas brilhantes, o cabelo liso e a pele branca denunciavam o patrício.
Seria político ou ladrão. Ou ambos.

Cumprimentou um por um. Ninguém respondeu.
Nas janelas, mulheres e crianças magras, olhos enormes, famintos.

Mesmo assim, decidiu ficar.

Durante dias, ergueu um castelo usando pedras irregulares, polindo com suas mãos de abrilhantar metais.
Não comeu. Não bebeu.
Depois, entrou, fechou portas e janelas e se deitou para exercitar o sono controlado dos andróides.

Lá fora, a revolta crescia.
Por mais que tentasse ser simpático, trouxesse baldes da represa com sua força especial, ajudasse a consertar barracos, por mais que tenha sido o pau para toda a obra do povoado naqueles dias e noites, eles o olhavam com pavor.

O estranho não bebia nem comia, não dormia como os mortais. A pele branca de farinha o sol não curtia, os olhos a noite não fatigava.

Afiaram facas e foices, machados e cutelos. Aguardando. Coragem não tinham de entrar na fortaleza do coisa ruim, mas esperavam.

No meio da noite, sentindo a arruaça, Lokus abriu a porta.
Multidão de cortes danificaram sua pele especial.

Espantado, abriu caminho entre o populacho distribuindo socos até alcançar outra vez o deserto.
Raios cortavam o céu pesado, a tempestade do sertão se aproximava. Logo desabou uma cascata, o povo se espalhou, fugindo da ira divina.

Lokus se escondeu numa caverna rochosa, esperando.

Quando a seca voltou, coisa incrível acontecera: seus braços e pernas sangravam! O líquido rubro escorria pelas pedras se infiltrando na areia.

Seu cérebro explicou como ferrugem, provocada pela água nos cortes que danificaram a pele sintética.
Mas ele tinha certeza: era sangue. Humano, como sempre suspeitara.

Deitou no areal semeado de estrelas e aguardou a morte.
Ainda hoje está lá, eternamente, esperando.
Imagem: Siegfried Zademack


Círculo Viciado

Fechou o livro e olhou para o parque.
Entardecia. Uma bruma delicada subia da relva, esgarçando-se nas folhas da cerca viva. O sol descia suavemente atrás das árvores.
Estrelas começavam a surgir, quando respondeu:
- É apenas um livro idiota, um romance sobre uma jovem aristocrata e o namorado pobre.
Ele sorriu irônico e segurou o livro com cuidado, como se pegasse fogo.
Agastada, ela correu para a porta de casa, os sapatinhos macios magoando-se nos espinhos. Correu atrás dela, prendeu seus braços e a beijou. Ela então......


*******


- O que está lendo aí?
Assustada, largou o livro e deixou cair o marcador de couro verde. Por trás do sofá de couro, ele tentava ver o título, enquanto ela chutava o pobre para baixo da mesa. O rapaz pulou em direção ao volume. Lutaram durante alguns segundos, até que a jovem, vencida, deixou que ele pegasse a presa.
- Memórias de Cantervillle - confissões de uma milionária. Desde quando você lê estas coisas?
- Desde quando me dá vontade. Leio o que me interessa e você não vai querer agora tomar conta das minhas leituras, como tenta fazer com os pensamentos.
Ele deixou cair o livro, aborrecido.
- Não regulo suas leituras, muito menos seus pensamentos, fiz apenas um comentário sem maldade.
- E eu estou cansada deste tipo de observação casual que se destina a me policiar...
Tentou conter a ira, se aproximou dela, mas continuava aborrecida.
Jogando o livro longe, se atirou na poltrona e ligou a televisão......


************

Quando ele enfiou a chave na porta, tive que parar a leitura e esconder o livro.
Como explicar que preferia ler sobre relacionamentos à especulação filosófica?
Fingi que acendia um incenso. O perfume delicado inundou o pequeno conjugado.
Apanhei a Suma Teológica. Quando ele me beijou, cheirava à cebola. Representei estar apaixonada, segurei seu rosto e o coloquei entre meus seios.
Ele tentou abrir a blusa, aleguei dor de cabeça, pedi uma massagem tântrica.
Retirei a coberta de seda e deitei no sofá esfiapado.
Delicadamente, começou a manipular minha coluna maltratada. Pensei nos personagens do livro e refleti:
- É um bom homem, apesar de tudo.
Mas era muito pouco para mim.
Ele se levantou, de repente, irritado, diferente, não entendi o que acontecia......


*********

- Livro de papel ? Menina, onde encontrou?
Você larga a leitura e responde depressa: no depósito de lixo, ia usar para acender o fogão. O carvão acabou.
Seu homem olha interessado para o livro, tenta folhear algumas páginas, ler o entediava.
Seu homem é viciado em programação neural, nunca entenderia a graça de ficar horas apenas imaginando, sem vivenciar, catando letras numa folha amarelada.
Você sabe que é absurdo, antiquado, irreal.
Mas no momento, tudo se tornou antiquado e irreal, quando você só dispõe de uma caldeira velha, um fogão do século passado e as ruínas de uma casa para se abrigar da chuva ácida.
Ele joga o livro no fogo e seu coração sangra enquanto você vê as páginas retorcidas sendo destruídas. Onde achará outro livro de papel?
Seu homem junta as mãos diante de fogo e profetiza:
- Amanhã vai fazer muito mais frio do que hoje.....


************

- Você ainda lê estas bobagens de Ficção Científica? Veja só, ninguém previu este calor infernal que estamos vivendo.
Olhei para ele:
- Estamos vivendo?


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Imagem: Leonor Fini


Na Malásia


Na Malásia a poesia
é toda prosa
Na Malásia
Compro você
Por dez centavos
E deixo o troco
ao silêncio dos corvos
Na Malásia
Por toda a eternidade
Significa bem pouco

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