Sunday, November 30, 2008

TE PROCUREI

“Há dois mil anos te mandei meu grito...”
(Castro Alves)
Imagem: Maria helena Bandeira

Chovemos

E ainda estamos aqui, parados, esperando a hora.
E por todos os séculos choramos e acreditamos e nem assim você apareceu. e pensamos que haveria uma chegada com trombetas, mas só veio o silêncio imprevisto da noite eterna. E pensamos que estrelas brilhariam, mas nossos olhos contemplaram o vazio negro da ausência.
E esperamos um sol de verdades ofuscantes, mas só houve o brilho de nossas próprias lanternas cegas.
E conhecemos que estávamos sós, no barro, na lama, no pó de onde viéramos.
E apenas a chuva nos molhando enquanto aqui, como estátuas de pedra, esperamos

E de olhos fechados, chovemos.

MÍNIMO MÚLTIPLO COMUM
Imagem: Maria Helena Bandeira


- Boa tarde. Recebi este papel dizendo que eu deveria me apresentar aqui hoje.
- Segundo Piso. Próximo.
- Como assim Segundo Piso? Aqui está escrito Primeiro.
- Você se apresenta no Primeiro e eu encaminho pro segundo. Próximo!

****

- Recebi este papel e a moça do Primeiro Piso me mandou pra cá.
- Como era o nome da moça, Senhor?
- Não sei, ela não me disse, só mandou que eu...
- Sem o nome da pessoa que o encaminhou não posso fazer nada. O senhor vai ter que voltar e se informar. Próximo.

****

- Senhor, está furando a fila...
- Mas eu estive aqui, lembra? Só preciso saber seu nome porque a moça do Segundo Piso...
- Sinto , Senhor, mas precisa esperar na fila.

****

- Pronto, está aqui
- O que?
- O nome da moça do Primeiro Piso. A outra atendente me disse que precisava esta informação.
- Tem o CPF?
- Está aqui.
- Mas este é o seu CPF!
- Claro, sou eu.
- O senhor não entendeu. O CPF da pessoa que o encaminhou ao Segundo Piso.
- Mas ninguém me disse nada! A outra atendente disse que eu precisava apenas do nome!
- Sinto ,senhor, vai ter que voltar ao Primeiro Piso

****

- Moça, já perdi quatro horas em duas filas, mas consegui o CPF da atendente que me encaminhou.
- Muito bem, Senhor, agora vou carimbar seu protocolo e pode se dirigir ao Terceiro Piso.
- Como assim? Eu nem sei o motivo de ter sido chamado! Vim porque o comunicado era urgente e poderiam suspender meu pagamento. Você pode ao menos me informar qual é o assunto?
- Sinto, senhor, minha função é verificar os dados do Primeiro Piso. Próximo!

****

- Estou vindo do Segundo Piso após ser encaminhado pelo Primeiro Piso atendente ***, CPF ***
- Quem o encaminhou do Segundo Piso? Preciso do nome e CPF do atendente
- Nãooooooo ! Vai começar tudo de novo? Não dá para você simplesmente me dizer porque fui convocado com urgência a este departamento?
- Sinto, senhor, estas não são as minhas funções. Próximo.

****
- Este é o décimo piso?
- É sim. O último.
- Nem acredito! Trouxe o nome e o CPF dos atendentes de todos os andares anteriores.
- Muito bem, senhor. Em que posso serví-lo?
- Recebi esta convocação urgente.
- Deixa eu ver o papel. Carteira de identidade e CPF por favor.
- Está tudo aqui: Identidade, CPF, Título de Eleitor, Carteira de Sócio do Flamengo, Plano de Saúde, cartão do SUS...
- Cartão do SUS?.. Não vai dar.
- Qual é o problema?
- Os segurados do SUS devem comparecer ao prédio em frente, mesmo departamento, Primeiro Piso.
- E você deve comparecer diante de São Pedro!

****
- O que houve?
- Mais um segurado tentou assassinar um atendente. Depois se jogou pela janela dizendo que ia procurar o Primeiro Piso
- Tem doido pra tudo. Próximo.
A ESTRADA

“Não há caminho, caminhante, o caminho se faz ao caminhar”
Imagem : trabalho sobre quadro de Paul Christiaan Boos


Esqueletos de pássaros pressagiam o enorme silêncio. Bois descarnados brilham ao sol.
Nenhuma indicação na estrada. Apenas a marcação dos quilômetros para o topo. O suor escorre dentro da gola, umedece o pescoço causando arrepios. Não há árvores, só milharal até onde a vista alcança.
Subo com dificuldade, um pé diante do outro, olhando para o céu, nunca para o vale. Céu azul, sem nuvens. A claridade dói nos olhos, mas insisto.
Pareço entrar na imensa bola sobre mim e isto me dá ânimo, sugado pela lâmina curva do mundo verde e bege.
Lágrimas impedem a visão, tropeço, caio.
Olhar para o alto é perigoso, repete meu senso comum.
Visualizo as pedras da estrada. Antes pareciam amigas, agora incomodam, cortam a sola do calçado, apodrecem minha determinação alagada de suor.
Ignoro a dor, uma perna, outra perna, subida cada vez mais íngreme. Campos desaparecem, surgem paredões, cortes abruptos para o vazio.
Tento esquecer a paisagem, não resisto, chego na borda e olho.
Vertigem.
Os campos cortados por veios amarelos, estradas bifurcantes, esqueletos alvos faiscando ao sol.
Não há som, nenhum vento. Nada.
Nem dos meus passos na luta contra o cascalho adensado.
Prossigo. Mais teimosia que vontade, esgotado.
Tento olhar o céu novamente, o azul laminado machuca, enxugo as lágrimas com a manga, olho para as pedras e o crânio pequeno de um animal indistinto.
Não sofro.
Minha determinação é maior. Impossibilidade de retroceder, paixão de continuar, atingir o topo que ainda não consigo ver mas existe.
Um pé diante do outro, uma perna levantada, outra arrastada sobre as solas feridas, o calçado roto.
Olhos doendo, tiro a camisa empapada, espero uma brisa que não vem, um canto que não existe.
Continuo. Sem fé, sem coragem, sem medo. Subindo. A respiração difícil. Aspiro um ar de toneladas, os pulmões doem no esforço, a garganta seca se contrai, a língua uma fita de couro ardendo, mastigo o vazio.
De repente, o topo. Não há mais estrada, só céu engolindo o mundo.
Ando com mais força, as pedras rolam sob mim, deslizam, caindo sem barulho.
Finalmente paro diante do vazio. O precipício vertiginoso. Respiro com dificuldade. Cheguei.
Volto os olhos por instinto e vejo a placa, quase encoberta por milhares de ossos ressequidos:
Tudo termina aqui.
Minha carne começa a tremer, o jogo é perverso demais, não vou aceitar.
O abismo é a continuação, o abismo vai me redimir, me salvar das garras do inevitável.
Meu corpo desce vertiginoso, depois plana e cai suavemente no milharal.
Ar puro inunda os pulmões. Choro de alegria antes de ver o novo cartaz:
Aqui tudo começa.

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"Não sabemos sequer o que somos, quanto mais o que é a realidade exterior da qual somos parte” (Philip K. Dick em Valis)

“Disse assombro onde outros dizem apenas hábito.” ( Borges em Quase Juizo Final)





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