Saturday, October 20, 2007

Imagem: Siegfried Zademack


Círculo Viciado

Fechou o livro e olhou para o parque.
Entardecia. Uma bruma delicada subia da relva, esgarçando-se nas folhas da cerca viva. O sol descia suavemente atrás das árvores.
Estrelas começavam a surgir, quando respondeu:
- É apenas um livro idiota, um romance sobre uma jovem aristocrata e o namorado pobre.
Ele sorriu irônico e segurou o livro com cuidado, como se pegasse fogo.
Agastada, ela correu para a porta de casa, os sapatinhos macios magoando-se nos espinhos. Correu atrás dela, prendeu seus braços e a beijou. Ela então......


*******


- O que está lendo aí?
Assustada, largou o livro e deixou cair o marcador de couro verde. Por trás do sofá de couro, ele tentava ver o título, enquanto ela chutava o pobre para baixo da mesa. O rapaz pulou em direção ao volume. Lutaram durante alguns segundos, até que a jovem, vencida, deixou que ele pegasse a presa.
- Memórias de Cantervillle - confissões de uma milionária. Desde quando você lê estas coisas?
- Desde quando me dá vontade. Leio o que me interessa e você não vai querer agora tomar conta das minhas leituras, como tenta fazer com os pensamentos.
Ele deixou cair o livro, aborrecido.
- Não regulo suas leituras, muito menos seus pensamentos, fiz apenas um comentário sem maldade.
- E eu estou cansada deste tipo de observação casual que se destina a me policiar...
Tentou conter a ira, se aproximou dela, mas continuava aborrecida.
Jogando o livro longe, se atirou na poltrona e ligou a televisão......


************

Quando ele enfiou a chave na porta, tive que parar a leitura e esconder o livro.
Como explicar que preferia ler sobre relacionamentos à especulação filosófica?
Fingi que acendia um incenso. O perfume delicado inundou o pequeno conjugado.
Apanhei a Suma Teológica. Quando ele me beijou, cheirava à cebola. Representei estar apaixonada, segurei seu rosto e o coloquei entre meus seios.
Ele tentou abrir a blusa, aleguei dor de cabeça, pedi uma massagem tântrica.
Retirei a coberta de seda e deitei no sofá esfiapado.
Delicadamente, começou a manipular minha coluna maltratada. Pensei nos personagens do livro e refleti:
- É um bom homem, apesar de tudo.
Mas era muito pouco para mim.
Ele se levantou, de repente, irritado, diferente, não entendi o que acontecia......


*********

- Livro de papel ? Menina, onde encontrou?
Você larga a leitura e responde depressa: no depósito de lixo, ia usar para acender o fogão. O carvão acabou.
Seu homem olha interessado para o livro, tenta folhear algumas páginas, ler o entediava.
Seu homem é viciado em programação neural, nunca entenderia a graça de ficar horas apenas imaginando, sem vivenciar, catando letras numa folha amarelada.
Você sabe que é absurdo, antiquado, irreal.
Mas no momento, tudo se tornou antiquado e irreal, quando você só dispõe de uma caldeira velha, um fogão do século passado e as ruínas de uma casa para se abrigar da chuva ácida.
Ele joga o livro no fogo e seu coração sangra enquanto você vê as páginas retorcidas sendo destruídas. Onde achará outro livro de papel?
Seu homem junta as mãos diante de fogo e profetiza:
- Amanhã vai fazer muito mais frio do que hoje.....


************

- Você ainda lê estas bobagens de Ficção Científica? Veja só, ninguém previu este calor infernal que estamos vivendo.
Olhei para ele:
- Estamos vivendo?


*******



0 Comments:

Post a Comment

<< Home


Web Hosting Services