Wednesday, July 30, 2008

Espreita e busca

“Longínquos como Oceanias- Brancas, sobrenaturais

Oh inacessíveis praias!...”

(Bandeira – Canção das Duas Índias)








Uma Noite em Paris


A névoa cobria a cidade, deixando entrever a ponta brilhante de alguns prédios no horizonte.
Não sabia quem era, de onde vinha, para onde ia.
Olhei o terraço ao meu redor: como viera parar ali?
A única coisa clara em minha mente era: preciso matar Paulus. Só que não tinha a menor idéia de quem era Paulus.
Seria meu inimigo? Ou eu seria inimigo dele? Um serial killer, um matador de aluguel? Nada disto ecoava na memória vazia.
Somente a frase, nítida.
Paulus estaria naquele prédio? Estaria neste momento bem atrás de mim, esperando para me pegar antes que eu o pegasse?
Avaliei a situação olhando a névoa aumentar, luzes sumindo na escuridão opaca. Não sabia
Como cheguei aqui?
No fundo do terraço, do outro lado da borda onde me encontrava, uma porta em arco se abria para o interior iluminado. Eu devia ter vindo de lá
A menos que tenha saltado do espaço. Mas aerobus e aerotaxis não estacionavam fora dos pontos.
Como eu sabia disto? Não fazia idéia.
Andei até o interior iluminado com a sensação urgente de que precisava matar Paulus.
Não havia ninguém no salão luxuoso. Olhei minhas roupas surradas: certamente não morava ali. Seria empregado de Paulus?
Tudo estava silencioso, apesar das luzes acesas. Telões apagados, telefones desligados.
Andei até a porta, descobri um tubo volante.
Na mesma hora soube que podia me levar para fora ou para baixo. Tive certeza de que chegara nele embora não lembrasse porque.
Já que não tinha referências além do exterior ao meu redor, preferi descer os andares e tentar descobrir Paulus.
Mas como faria isto? Não podia simplesmente sair perguntando a todos que encontrasse. Poderia me enganar, matar o Paulus errado. Isto supondo que tivesse coragem de assassinar um desconhecido sem outra razão além da frase incessante na cabeça.
Tomei o tubo, desci ao térreo.
As portas se abriram para um saguão, vidraças refletindo a névoa escura pontilhada de luzes embaçadas.
Nada me parecia familiar.
Saí, um vento gelado me obrigou a fechar o casaco. Os olhos ardiam na umidade, não enxergava nada diante de mim.
Andei horas, guiado por um instinto predador inexplicável.
A névoa ficou menos densa, estava numa praça, diante de um chafariz envelhecido.
Sentei-me para descansar, o mantra girando na cabeça: destruir Paulus.
Da escuridão surgiu um casal abraçado. Ele segurava delicadamente os ombros da mulher, curvado sobre seu rosto corado de frio.
O reflexo me fez saltar sobre o homem.
Paulus foi rápido, mas eu sabia atirar melhor. Caiu espirrando sangue sobre a companheira.
Eu não ouvia nada. No silêncio de gritos ocos percebia a memória voltando: meu corpo seqüestrado, a identidade roubada junto com as lembranças.
Paulus, seqüestrador de vidas.
Com a morte dele, o código que protegia as memórias roubadas era apagado, eu voltava a existir.
Olhei a mulher. Será que a conhecia?
Lembranças vagas de uma noite em Paris. Madeleines, você disse. Ou foi Veneza?

***********




Pintura: Leonor Fini

1 Comments:

Anonymous Anonymous said...

Maria Helena,
Algo me diz que a minha admiração pelos Bandeira não se limitará ao Manuel !
Quanto ao Paulus, ahhhhhhhh, eu também tenho um Paulus que preciso "matar" para voltar a ser eu mesma !
Vou correndo !
Um abraço !
Alice

4:44 PM  

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