Saturday, July 29, 2006

A pálpebra inexistente da certeza


Os anões não tinham pálpebras.

Esta fora a primeira coisa que observara neles e , no fundo, deve ter sido a mais importante. Pelo menos a mais importante para o estado em que estou agora, no meio do nada indescritível. Notei outras coisas sobre eles mais tarde, a medida em que fomos convivendo dentro do Cubo, mas não necessárias para mim.

Seus olhos eram como os das bonecas quebradas, jamais se fechavam, nem um piscar rompia a dureza daquelas íris verdes. Havia anões de olhos escuros também e era tenebroso olhar para eles, arrastantes de negrume que me deixavam noites sem dormir.

Não que isto fosse necessário no Cubo.

Dormir era uma opção como qualquer outra para os convidados, como, aliás, tudo naquele lugar. Não havia regras, nem leis, nada era sugerido ou aconselhado. Vivíamos uma liberdade aflitiva e até sair e voltar ao mundo dito normal era permitido, mas ninguém escolhia esta opção.

Por quê? Nem mesmo eu sei. Quando tento lembrar de mim naquela época, penso que era a capacidade de poder escolher que nos inibia. A liberdade absoluta pesava tanto quanto a escravidão e incapazes de decidir entre o risco total de errar ou de acertar milhões de vezes, preferíamos ficar paralisados.


Os anões nada esperavam ou cobravam de nós. Apenas nos olhavam com suas imensas íris de crianças velhas, sem pálpebras protetoras. E aquele olhar tinha o poder de nos impelir a alguma coisa que não sabíamos nem mesmo se existia.

Dentro do Cubo tudo era possibilidade e, por isto mesmo, nada se concretizava.

Eu errava por lá buscando uma escolha, mas ela não vinha. Então me perdi no olhar do anão mais próximo e cheguei ao vértice. Foi mais fácil aprender a negação. Descobri a possibilidade de não ser coisa nenhuma, sendo. De me negar a escolha.

Então cheguei, finalmente, a este nada onde estou, eternamente, sendo algo que não defino nem me interessa. E é esta a graça da coisa.

Talvez eu seja a pálpebra inexistente do olhar daquele anão. Talvez eu seja a impossibilidade de vedar o olho agudo da certeza.

Talvez eu seja apenas a impossibilidade.
Mas isto, de uma certa forma, hoje me basta.

4 Comments:

Anonymous Anonymous said...

Minha Mehelzinha linda!!!
Que delícia de texto, li, reli, treli e a cada leitura eu me sentia descrita em algumas frases e principalmente na que "talvez eu seja a impossibilidade de vedar o olho agudo da certeza."
Por esta razão, eu não devo me deixar ficar dentro do Cubo, onde tudo é possibilidade e, por isto mesmo, nada se concretiza.
- Ou devo?
Beijo,
Nédier

8:49 AM  
Blogger parla marieta said...

Élena, querida.
Adorei milhões esse texto. Ah, acho que vou sonhar com os anões sem pálpebras.
Obrigada por esse presente e linda imagem.

8:58 PM  
Blogger Saramar said...

Querida, um texto rico, meio poético, e com um final estupendo!
Que mundo é este? Um nada? um sonho? Miragens?
Adorei.

Beijos

10:17 AM  
Anonymous Anonymous said...

Pela narrativa, lembrei do imortal Qfwfq, de Calvino. Belo texto, bela epígrafe. Beijo!

5:48 AM  

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