Tuesday, October 11, 2005

Antes que eu me esqueça de tudo, vou digitando este documento.

Fui um dos primeiros candidatos ao programa de implante de memórias para pacientes de Alzheimer Minor .

Como todos os outros, perdi meu passado e vivo um eterno agora, o que me torna um ser onipotente e solitário. Esqueço todos os que se aproximam de mim no momento em que somem de minha presença e sei que existem apenas por causa do meu implante, ao qual agreguei este aspecto importantíssimo.

Pessoas me dão comida, pois não saberei o que fazer ao sentir fome, na verdade nem conhecerei o que é fome em termos abstratos, apenas a sentirei, como qualquer necessidade fisiológica, quando se corromperem as memórias implantadas.

A única coisa que os Minor mantém e os distingue é a capacidade de ler e escrever. Porque acontece este fenômeno, que região do cérebro permanece intacta é algo para os pesquisadores – sei apenas que é assim. Vejo, ouço, digito e leio - estas capacidades não perdi.. Mas como não tenho lembranças originais, de nada adiantará sem o implante. Por isto me candidatei assim que soube da abertura do programa e do meu diagnóstico irreversível.

Roubei, subornei, gastei quase tudo que tinha para recapturar e implantar minhas próprias memórias e algumas alheias.

Consegui ser o primeiro candidato. Misturei acontecidos e desejados, criei um passado que me satisfaz. Já que pude escolher a doença, fui o meu próprio Deus neste resgate.

E te revejo, linda, em Paris, tomando chá enquanto chove - há gotas nos vidros das janelas ...
...e já não sei o que vivi e o que comprei... mas na memória implantada eu te amo, talvez tenha te amado sempre, não importa.

O implante não é confiável, sinto que as lembranças estão se corrompendo... confundo datas, lugares.. foi em Veneza que nos encontramos? Chovia em Londres naquele verão? Ou foi Paris? revejo sua boca, cada vez menos nítida, olhos misteriosos de marzipan... o que é marzipan? Lembro da frase, mas não do rosto ou dos motivos..

Meu terror é voltar a viver apenas nesta clínica onde estou encerrado. Eu e o micro que me deram para relatar as sensações e experiências - sou uma cobaia humana.

Memórias são minha única viagem - por elas saio daqui... mas cada vez mais me distancio das lembranças. Vivo um eterno presente sem sombras... fui implantado ou inventei?

Releio o que escrevi - Veneza?... Olhos de marzipan?... Chuva em Paris?.. implante.. não sei mais o que significam..... tudo parece absurdo, confuso...

Estranho texto... quem terá escrito? Às vezes penso que existem outros como eu em algum lugar, mas é uma impressão fugidia. Meu mundo é aqui e neste micro onde leio coisas que não compreendo.

... Vivo um eterno presente sem sombras.... Gosto desta frase. Mas, por algum motivo que não consigo recapturar, parece triste.

E repito: você, na chuva, em Paris, para me consolar. Embora não tenha a menor noção do significado.

Há vidros em Veneza no verão...

Pintura - Leonor Fini

4 Comments:

Anonymous Anonymous said...

Oi Mhel,
muito bom esse conto. Posso colocar o link do Ovo no meu site?
Bjs

Udo
http://udo.aguamarinha.de

3:45 AM  
Anonymous Anonymous said...

Há tempo que procuro por algo que me traduza. Procuro espelhos, textos, penetro em vidas alheias, em furnas virtuais...
Procuro meu cerne, minha essência nos outros.
Há algo que me asfixia, me estrangula, me fere.
Algo sombrio que não me permite desvendá-lo...
Seu texto, seu texto... Ele me aponta para uma
luz... Uma luz azul turquesa.
- Mar -

9:01 AM  
Anonymous Anonymous said...

Mhel, querida

Seu blog está cada dia mais lindo.

Beijo,

UK

7:18 PM  
Blogger Nina said...

Lindo, lindo, lindo!
amei. texto e foto.
beijos

8:05 AM  

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