Saturday, July 29, 2006

MISTÉRIO

"Talvez eu tenha criado as estrelas e o sol e a enorme casa, mas já não me lembro.
"

(Jorge Luis Borges – A Casa de Asterion)
A pálpebra inexistente da certeza


Os anões não tinham pálpebras.

Esta fora a primeira coisa que observara neles e , no fundo, deve ter sido a mais importante. Pelo menos a mais importante para o estado em que estou agora, no meio do nada indescritível. Notei outras coisas sobre eles mais tarde, a medida em que fomos convivendo dentro do Cubo, mas não necessárias para mim.

Seus olhos eram como os das bonecas quebradas, jamais se fechavam, nem um piscar rompia a dureza daquelas íris verdes. Havia anões de olhos escuros também e era tenebroso olhar para eles, arrastantes de negrume que me deixavam noites sem dormir.

Não que isto fosse necessário no Cubo.

Dormir era uma opção como qualquer outra para os convidados, como, aliás, tudo naquele lugar. Não havia regras, nem leis, nada era sugerido ou aconselhado. Vivíamos uma liberdade aflitiva e até sair e voltar ao mundo dito normal era permitido, mas ninguém escolhia esta opção.

Por quê? Nem mesmo eu sei. Quando tento lembrar de mim naquela época, penso que era a capacidade de poder escolher que nos inibia. A liberdade absoluta pesava tanto quanto a escravidão e incapazes de decidir entre o risco total de errar ou de acertar milhões de vezes, preferíamos ficar paralisados.


Os anões nada esperavam ou cobravam de nós. Apenas nos olhavam com suas imensas íris de crianças velhas, sem pálpebras protetoras. E aquele olhar tinha o poder de nos impelir a alguma coisa que não sabíamos nem mesmo se existia.

Dentro do Cubo tudo era possibilidade e, por isto mesmo, nada se concretizava.

Eu errava por lá buscando uma escolha, mas ela não vinha. Então me perdi no olhar do anão mais próximo e cheguei ao vértice. Foi mais fácil aprender a negação. Descobri a possibilidade de não ser coisa nenhuma, sendo. De me negar a escolha.

Então cheguei, finalmente, a este nada onde estou, eternamente, sendo algo que não defino nem me interessa. E é esta a graça da coisa.

Talvez eu seja a pálpebra inexistente do olhar daquele anão. Talvez eu seja a impossibilidade de vedar o olho agudo da certeza.

Talvez eu seja apenas a impossibilidade.
Mas isto, de uma certa forma, hoje me basta.

ANTES DO FIM DO DIA



O sentinela olhava a planície gelada esperando ver, antes do fim do dia, algum ponto que significasse ajuda. De seus olhos jovens dependiam os poucos que sobraram no forte.

Mas a planície se estendia, monótona e branca, sempre igual fazendo doer a vista, sob o sol fraco do inverno.

O sentinela olhava para a planície florida esperando ver, antes do fim do dia, alguma fumaça que significasse ajuda. De seus olhos um pouco cansados dependia a vida dos que sobreviveram no forte atacado.

Mas a planície se abria diante dele com suas flores e regatos, sem nenhuma presença sob o céu azul da primavera.

O sentinela olhava a planície seca, os arbustos raquíticos quebrando a monotonia do solo castigado, esperando ver, antes do fim do dia, algum brilho a mais que significasse ajuda. De seus olhos ardentes dependiam os que permaneciam no forte incendiado.

Mas a planície se alongava diante dele como uma ferida aberta, com sua chaga de erosão, sem nenhum sinal sob o sol causticante do verão.

O sentinela olhava a planície arborizada, os frutos que apodreciam nos galhos, esperando ver, antes do fim do dia, uma sombra daqueles que os colheriam. De seus olhos inchados dependiam aqueles que estavam ainda no forte destruído.

Mas a planície se abria diante dele com seus frutos passados, sem nenhuma figura sob o sol declinante do outono.

O sentinela olhava a planície gelada esperando ver algum ponto que significasse ajuda. De seus olhos dependiam os poucos que sobraram no forte.

Antes do fim do dia eles chegaram. Mas não eram os esperados.

Atacaram , incendiaram, destruíram.
Não sobrou pedra sobre pedra.

A planície se estendia, monótona e branca.

Nenhuma presença sob o céu azul de primavera.
Nenhum sinal sob o sol causticante do verão.

Nenhuma figura sob o sol declinante do outono.

Só uma sentinela esperando o fim do dia.

Galo de Prata


Crepúsculos de Açores
Convento de cascalhos
Igreja carmelita de polvilho
Sepulcros caiados de pólvora
Paióis de gelo
Incontáveis tubérculos no azul
Teu nome
Ah o teu nome
Repetido
E eu pensando que havia
Algum sentido


pintura; Magrittte

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