Thursday, April 23, 2009

PARADIGMAS





Vivemos em um mundo onde os rótulos definem o que devemos consumir. Um universo de padrões. De predefinições. De paradigmas.
Conhecer o suficiente para gerar a capacidade de ignorar esses modelos é uma obrigação da literatura fantástica moderna. Conhecer as regras e quebrá-las por convicção, jamais por ignorância.

Causar o novo é preciso! Barreiras são erguidas apenas para serem colocadas abaixo. Um paradigma só é tão eterno quanto a capacidade humana de desafiá-lo.
A Coleção Paradigmas, da Tarja Editorial é justamente o ângulo que rompe a membrana entre os subgêneros consagrados para fomentar o nascimento do original. Surge para apontar alguns modelos que deram certo e as fórmulas que podem ser seguidas – ou rompidas. A proposta é apresentar contos incomuns, mesmo que baseados em paradigmas consagrados.

Este primeiro volume traz 13 autores:

Ana Cristina Rodrigues
Bruno Cobbi
Camila Rodrigues
Cristina Lasaitis
Eric Novello
Jacques Barcia
Leonardo Pezzella Vieira
M.D.Amado
Maria Helena Bandeira
Osíris Reis
Richard Diegues
Roberta Nunes
Romeu Martins

Mais sobre o projeto pode ser lido em
http://colecaoparadigmas.wordpress.com

E o primeiro volume pode ser adquirido no site da Tarja:
(
http://www.tarjalivros.com.br/detalheprod.asp?produto=36)

Ou nas livrarias Cultura e Martins Fontes Paulista
EXISTIR
este risco absoluto
(fernando mendes vianna)




A pálpebra inexistente da certeza




Os anões não tinham pálpebras.

Esta fora a primeira coisa que observara neles e , no fundo, deve ter sido a mais importante. Pelo menos a mais importante para o estado em que estou agora, no meio do nada indescritível. Notei outras coisas mais tarde, a medida em que fomos convivendo dentro do Cubo, mas não necessárias para mim.

Seus olhos eram como os das bonecas quebradas, jamais se fechavam, nem um piscar rompia a dureza daquelas íris verdes. Havia anões de olhos escuros também e era tenebroso olhar para eles, arrastantes de negrume que me deixavam noites sem dormir.

Não que isto fosse necessário no Cubo.

Dormir era uma opção como qualquer outra para os convidados, como, aliás, tudo naquele lugar. Não havia regras, nem leis, nada era sugerido ou aconselhado. Vivíamos uma liberdade aflitiva e até sair do Cubo e voltar ao mundo dito normal era permitido, mas ninguém escolhia esta opção.

Por quê? Nem mesmo eu sei. Quando tento lembrar de mim naquela época, penso que era a capacidade de poder escolher que nos inibia. A liberdade absoluta pesava tanto quanto a escravidão e incapazes de decidir entre o risco total de errar ou de acertar milhões de vezes, preferíamos ficar paralisados. Os anões nada esperavam ou cobravam de nós. Apenas nos olhavam com suas imensas íris de crianças velhas, sem pálpebras protetoras. E aquele olhar tinha o poder de nos impelir a alguma coisa que não sabíamos nem mesmo se existia.

Dentro do Cubo tudo era possibilidade e, por isto mesmo, nada se concretizava.

Eu errava por lá buscando uma escolha, mas ela não vinha. Então me perdi no olhar do anão mais próximo e cheguei ao vértice. Foi mais fácil aprender a negação. Descobri a possibilidade de não ser coisa nenhuma, sendo. De me negar a escolha.

Então cheguei, finalmente, a este nada onde estou, eternamente, sendo algo que não defino nem me interessa. E é esta a graça da coisa.

Talvez eu seja a pálpebra inexistente do olhar daquele anão. Talvez eu seja a impossibilidade de vedar o olho agudo da certeza.

Talvez eu seja apenas a impossibilidade.
Mas isto, de uma certa forma, hoje me basta.
De muito longe, entre as bétulas


“Porque eu te amo e porque eu não te amo é que nos amamos” ( Mheta Thet Agar - livro das Contradições, volume 3 , página 8.045 )


Eu te matei mil vezes. Em Órion, Em Alpha, em Vehr. Traspassei teu corpo nu com a espada flamejante em Ângelus e o crucifiquei no antigo carvalho druida da Cornualha. Eu atirei uma flecha em ti entre os índios Navajos e peguei teu coração palpitante no ritual secreto das mulheres de Elêusis. Destruíste meu corpo outras mil, nas cavalgadas e lutas, entre as silenciosas estrelas de Luthor, nas planícies geladas de Alhambra. Incontáveis anos. Mas estou cansada.

Aqui, no alto, com a mão na arma, vejo tua pele brilhando e não sinto nada. Nenhum desejo de destruição, nenhuma sede de teu sangue quente, nenhuma fome de tua carne branca. Somente um cansaço imenso, abissal, um cansaço que percorre os astros indiferentes, que me faz adejar sobre todas as coisas – navio celeste desgovernado, estrela velha prestes a se extinguir.

Nosso jogo durou tanto tempo que esqueci onde começou. Se é que começou e não foi sempre assim, nos destruindo infinitamente, renascendo para morre, matar, devorar.

A mão está firme, mas eu hesito. Teu vulto se destaca entre as outras – mulheres que não são – aquelas que acabarão - cinza espalhada sobre campos ao amanhecer.

À luz da lua elas dançam, bailarinas delicadas num teatro de sombras, passam girando e eu as destruo uma a uma e te mantenho vivo. Sinto teu desespero, a marca de tua esperança de que continue nosso jogo perverso e o sentimento é como a água escura da piscina inerte. Parado. Embalsamado por perfumes que vem de longe, muito longe, onde não estamos mais.

Tu não entendes porque desrespeito nosso jogo, porque deixo de te matar já que é minha vez, porque te poupo e estrago os milhares de anos em que nos perseguimos com amor e ódio. Tudo que não pode haver é esta indiferença opaca, este tédio vazio com que olho para as dançarinas que abati. Todas.

Menos a ti..

Quando as sombras se esgotam, quando apenas um vulto permanece sobre o chão úmido, entre o perfume das bétulas, eu, lentamente, viro a arma para o meu peito.

E atiro.

Teu grito ecoa em meus ouvidos, mas é muito tarde para nós. Perdemos o jogo, querido e ontem será, finalmente, eterno.



USAR O TEMPO






Entrei na cabine e esperei.

Precisava de muito tempo, um tempo infinito para conseguir entender. Cliquei em milhares de anos atrás, especifiquei as coordenadas e sentei. Logo tudo ficou confuso como acontece nos pedidos extraordinários. A porta da cabine se abriu alguns segundos depois.

Estava no meio do nada. Para onde olhasse só via estepes geladas que um vento fino fustigava. Mas não sentia frio, claro. Não há sensações corporais térmicas no Tempore.

Andei um pouco, perdida, olhando o céu intensamente azul, de uma tonalidade que já não existia na Terra há muitos anos. Era agradável estar ali, sozinha na planície gelada, debaixo de um céu de cobalto.

Caminhei sem destino, recitando os mantras. Parecia tudo igual e, só por isto, podia ser diferente dentro de mim.

O tigre apareceu de surpresa. Enorme, uma criatura fabulosa, de músculos elásticos e fortes, esgueirando-se sobre o chão gelado com graça lenta. Duas grandes presas alvas sobressaiam dos lábios que uma língua vermelha e úmida lambia de vez em quando. Aproximava-se de mim, mas eu não tinha medo. Esperava.

O animal pareceu hesitar e eu sentei, abrindo os braços e ainda recitando os mantras. Ele foi chegando cada vez mais perto, lentamente, os olhos dourados fixos, hipnóticos.

Eu também o fitava, calma. Desta vez não haveria desistências.

Repetia os mantras cada vez mais alto e a força deles parecia impulsioná-lo para frente. Os olhos dourados já estavam a uma distância de dois metros, avaliando, algo tensos, famintos. A língua se tornara nervosa, mas o tigre se quedara, estático, todo ele uma tensão absoluta, preparando o bote.

Com graça e agilidade felinas, ele saltou e eu caí, espalhando pedaços de gelo que se estilhaçaram com o choque. O peso dele me tirou, por um momento, a respiração. Fiquei ofegante, sentindo suas enormes patas no peito, os olhos amarelos bem próximos do meu rosto.

Indagadores talvez? Não tive tempo de descobrir. Ele abocanhou meu pescoço com as presas fortes, ouvi um estalo, uma nuvem escura cobriu meu olhar. Ainda percebi, como num sonho, o sangue se separando do corpo e formando um rio vermelho que tingia de cor a alvura uniforme da estepe gelada.

Quando regressei à cabine, uma estranha paz me invadiu. Podia voltar ao meu verdadeiro tempo. Estava pronta para enfrentar o que me esperava lá fora.

Abri a porta. Chovia como sempre. As gotas se refletiam nas luzes dos altos edifícios de cristal. Pessoas passavam por mim, indiferentes e eu a elas.

Só que agora eu tinha um tigre, tinha uma morte, tinha uma experiência verdadeiramente minha.

Suicídios não são permitidos nesta época, mas usar o tempo sim.





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