Sunday, February 19, 2006

ME ENGANA, DIONÍSIO
“Insensato aquele que busca
o amor na fúria dionisíaca!”


( Manuel Bandeira)


APENAS UM CENTURIÃO


Linus estava nervoso, arrumou pela milésima vez a roupa de centurião, as placas que imitavam dourado, ajeitou a capa sobre o ombro musculoso e o capacete de plumas na cabeça.

Os outros da ala espalhavam-se pela concentração, a maioria dando entrevistas para as estereovisões do mundo todo.

Desagradava-lhe esta confusão em torno deles.
Teria preferido o anonimato discreto de uma ala qualquer, mas fora impossível.
Sua altura chamava atenção, elevando-o sobre a multidão de passistas, alcançando a ponta da bandeira que a mulata levava ao lado do mestre-sala.

Do alto dos seus dois metros, procurava aquela que roubara seu coração - rainha da bateria do Novo Rio desfilara antes dele e, agora, com certeza, estaria ali, em algum lugar das arquibancadas.

Queria que o assistisse, acreditasse que também pertencia a seu mundo, compreendesse que não era tão diferente quanto sua frieza delimitava, separando aquele espaço feérico do núcleo partido de seus dias cinzentos.

O diretor de harmonia empurrou-o com violência em direção aos centuriões que se arrumavam.

- Olha a hora!... olha a hora!...

Foi rebocado, com outros retardatários e tomou lugar em frente ao carro do Fórum Romano.

Diante dele estendia-se a serpente da escola formada, toda a multidão anônima, que antes corria de um lado para o outro, esperando o apito do diretor e o puxador do samba para iniciar o desfile.
O baticum da bateria estrondava em seus repiques, pandeiros, surdos, tamborins e cuícas.

- Todo mundo cantando o samba... vamos lá!... não quero ninguém calado...

Obedientes, Linus e seus colegas de ala, cantavam acompanhando a escola e o comando da bateria.

Quando alcançaram o início da passarela, e ele viu os milhares de espectadores espremidos em camarotes e arquibancadas, ouviu o troar dos aplausos, e as ventarolas agitadas, sentiu uma coisa estranha - parecia ser emoção.

Focalizou os assistentes e descobriu o corpo desejado, na tanga mínima que acentuava a forma escultural.

Animado pelo amor, iniciou com os outros a coreografia ensaiada.

Mas o vento que castigava a Avenida, o excesso de carga, ou a inveja de algum deus pagão fez desprender um cabo de energia que sustentava a decoração.

Partido, desceu com violência e atingiu o centurião que passava abaixo dele. A faísca se espalhou entre o restante da ala, através das mãos unidas, iluminando a rua e tornando fosforescente todo o grupo..

Com olhos que desmaiavam, Linus viu a admiração no rosto amado, acenando para a destruição.

Pela primeira e última vez ela entendeu ? tarde demais, cedo demais, no tempo certo ? carnaval

Das arquibancadas, dos camarotes, das cadeiras, a multidão delirava com os efeitos especiais, enquanto a primeira ala de robôs semi-humanos agonizava na avenida, no meio dos fogos, luzes, aplausos, gritos e do rubro sangue artificial que escorria pela calçada e se perdia nos porões da indiferença

A bateria pontuava as sirenes e o confete salpicava o drama com sua colorida máscara de frieza.
VELHA ALEGORIA



O confete escorria com os restos da chuva.

No meio fio, passistas massageavam pés doloridos.
Olhos pisados, lágrimas que ultrapassavam a dignidade ofendida.

Descendo dos carros, velhos sambistas desfilavam a mágoa, samba da violência.

Proibidos de desfilar.

Conversas nervosas entre dirigentes, celulares estalando...


Vamos perder nota? Vamos perder tempo?
Vamos enxotar os velhos, encaixotar os velhos atrás do segredo?

De repente, uma ordem seca - a porta se abriu.
A Velha Guarda ultrapassou as grades, penetrou na Avenida.

Nem um surdo, um repique, um tamborim.
Apenas palmas cadenciadas da multidão, de pé, aplaudindo.

Atravessaram a Avenida cantando o samba,

sem bateria, plumas ou paetês.

Olhos molhados, a dignidade reencontrada.
A mais bela alegoria do Carnaval.


Dez, nota dez.

MANHÃ DE CARNAVAL



Pintura: Susan Seddon Boulet
O cortiço fervilhava àquela hora mordente..
Pernas, braços, bundas, seios, picas, sêmens, sexos.
Gritos cortando a noite morna,
encalhando nos bueiros fétidos
por onde escorria o lodo da madrugada
Cinderela saiu mancando do quarto.

Devolve a porra do meu sapato, sua porca!

Cabelos voaram entre arquejos e unhadas.
No travesseiro ao lado, o Príncipe roncava.
Marcas do sapateado erótico marcando a barriga redonda.
Ao pé da cama o brilho cintilante de cristal.

Sunday, February 05, 2006

“Há uma voz que canta, uma voz que dança, uma voz que gira
Bailando no ar”

( Raul Seixas )
PELA DEUSA


Pintura Gustav Klimt


Eu acreditei em Petrus Amon Teth, o Elevado.

Como todos naquela época.

Enviei discos de propaganda que percorreram o território Valgoo e alimentei com meu leite as simbalas, abatidas para o banquete da vitória. Gastei os próprios pés e mais alguns, adquiridos em Moebius seguindo seus shows e comícios, trançando guirlandas de abelhas, atirando em ziguts inimigos, bebendo sangue ardente nas noites sem luas.

No dia da vitória estava na primeira fila dos barcos, singrando o mar de algodão em direção ao Zenith.

Fui lâmina e lupa, pesadelo e esperança. Eu fui seu tudo e seu nada, seu meio e seu fim.

Vi o exercito petroriano esmagar as populações que comerciavam às margens do Estinges e derrubar os muros de Alma e Singhor. Acompanhei os passos da decadência quando fartos de carne e luxuria se amontoaram em carniças nos diques de Alambra.

Cada vez mais gordo e oleoso, os cabelos grudados ao crânio redondo, vi sua imensa boca jamais saciada, seu pênis nunca flácido, a procura de toda a comida humana ou zigota, ardeliana, almíca ou singhata. Vi-o abandonar a luta, se entregar à devassidão e ao ócio.

Então eu decidi agir.

Todas as luas negras, Petrus levantava dos coxins o enorme corpanzil e era carregado até as águas da purificação. Lá, em meio ao fedor do enxofre e ao borbulhante líquido azulado, pedia perdão à Deusa e ofertava nove jovens virgens nuas a Seu serviço.

Eu estaria entre elas. Manobrei para conseguir, subornei, comprei, menti e matei. Virgem não sou, mas me tornei. Em Moebius comprei a peso de ouro um corpo escultural. Conhecia, como ninguém, o gosto de Petrus.

Durante o ritual, trabalhei para que me visse, para que seus olhos contemplassem minha beleza e mocidade. Triunfei.

Vi olhos ávidos me percorrerem, dancei como nunca, como sabia que era preciso.
Ele desafiou a Deusa e me chamou para a sua tenda.

A lua negra pesava e relâmpagos cortavam o ar em chamas violetas. Um silêncio mole percorria as flores apagadas ao redor. Soprava um vento de cadáveres.

Entrei na tenda e me curvei. Ele flechou meu corpo, me despiu. De todo jeito o satisfiz, como prostituta cristã, marafona zagaia, cortesã de alambra.

Chafurdava ainda em mim quando o raio de Lilith penetrou a tenda, gelado.

Deu um salto, assustado, gelatina de pavor .
Tarde demais. Nossa Deusa entrou pelos seus olhos, comeu os ouvidos, derrubou o sexo pagão.
Quando os outros o encontraram, remoçado e alegre, era Petrus Amon Teth na aparência.


Na verdade era eu.
A FORÇA DE UM GUERREIRO




Pintura Paul Christiaan Bos



- Amaldiçoado sejas, Abn El Taruz! Amaldiçoado teu nome em todo universo e por todos os tempos!

Abaixou os braços descarnados, veias grossas e azuis se destacando na brancura de cera.
Depois olhou para baixo.

O ovo pulsava conectado aos tubos, rios sendo ejetados dentro dele. Sangue e esperma, células que nutriam e mantinham o sopro vital.

Em alguns pontos já se esgarçava a carne frágil, apodrecida, esverdeada.

Ela tentava não ver.

Krion e Demeter se aproximaram, igualmente esquálidos e brancos, olhos enormes nas cabeças onde os poucos cabelos caiam desalinhados e sem vida. Pareciam fetos adultos, dor de não ser total, uma entrega absoluta.

- Acha que resiste?
- Tem que resistir. - respondeu seca.

Embaixo deles o Ovo se mantinha no ritmo habitual, envolto em gelo.

Quando Abn fugira levando a vida, conservaram a esperança no Ovo, alimentando-o com seu sangue e semente para que fosse o novo Messias de Elad. Todos morreriam de fome e radiação, Mas ele fora gerado com tecnologia superior e era nutrido de forma especial.

Só que o tempo e a natureza corriam contra eles. Não tinham mais forças para doar, com os alimentos limpos escassos, as mahalas criadas em cativeiro morrendo antes de dar leite.

Da torre envidraçada olhou para os pântanos ao redor - crateras borbulhantes de veneno.

- Ele será capaz de sobreviver onde não somos.

Os dois concordaram silenciosos.
Voltavam para os domos, quando um clarão riscou o céu.

- Maldito! Sibilou a monja levantando os braços em direção á luz
- É ele? - perguntaram os outros voltando para a sala da gestação... tem certeza?
- Absoluta. Conheço seu padrão cerebral.
- E por que voltou?
- Para rir de mim, para nos humilhar. Assim é Abn. Para destruir o Ovo talvez.

Sua voz ficou tensa.

A nave pratada pousou suavemente entre duas crateras.

Logo depois, a porta envidraçada se abriu.
Era de novo Abn. Saudável, irônico, egoísta.

A monja virou de costas, enquanto outros se inclinavam assustados.

- O que veio fazer aqui? palavras trincadas no ódio.
- Ver você, duscha.

O apelido doce cortando, faca certeira.
A Monja acionou o mecanismo sem olhar para trás.

Abn caiu sobre o Ovo que estremeceu em espasmos sangrentos.

O guerreiro se empenhou numa luta contra a carne esponjosa por intermináveis minutos, enquanto a monja e os dois eladianos olhavam silenciosos.

Finalmente se libertou, atirando contra o núcleo e cortando a nutrição central. O ovo foi murchando, cinzento, deixando escorrer a espuma sangrenta.

Saltou para a base e olhou para eles.

- Nojentos. Todos vocês.

Cuspiu para o lado.

- Nem vou me dar ao trabalho de mata-los. Estão mortos. Nasceram mortos como sua abominável criação.

No interior do Ovo cinzento, células se reproduziram com velocidade espantosa.

Antes que Abn alcançasse a nave, Ele explodiu a grade de vidro e o atingiu.

A monja suspirou, quase sem voz:

- Dei ao Ovo o que precisava. A força de um guerreiro saudável.

Pintura Susan Seddon Boulet


CORAÇÃO ITINERANTE

Eu sou a lua no céu
Eu sou a terra barrenta
Eu sou o rio que canta
Eu sou a água corrente
Eu sou o céu estrelado
Eu sou a areia quente
Eu sou o vento constante
Sou a brisa do levante
Sou a cheia da barragem
Sou o corte da estiagem
sou o canto do berrante
sou a ponta do punhal
sou a subida do sol
sou a gruta sou a grota
sou a moita e o rouxinol
eu sou tudo o que se move
e o que fixo, o que é perene
sou de pedra sou de barro
sou de vidro sou de creme
sou de lixo sou de lata

quem quiser que me condene
mas eu sou tudo que vive
sou tudo que canta e geme
sou tudo que me concerne
sou o que nem me interessa
sou a lentidão e a pressa
sou o ovo e a serpente
sou a boca e sou o dente
sou o diabo e o tridente
sou deusa e também demente
e nem com isto me acalmo
pois trago dentro da alma
a ansiedade constante
de ser tudo o que me cerca
e de ser um nada errante
coração itinerante



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