Thursday, December 29, 2005

RENASCER

“Eu digo que ninguém se perdoa no tempo.

Que a loucura tem espinhos como uma garganta.
Por vezes tudo se ilumina.Por vezes sangra e canta.”

( Herberto Helder )



Reflexão de fim de ano


Fico pensando em quem vem aqui e lê um texto de FC satírica ou fantasiosa como Parallaxis e O espelho do rei e depois volta e encontra umas Cartas de Amor Suburbano. E quem chega neste dia e depois do Alfredo, se depara com um texto amargo como a embriaguez do espelho e pensando encontrar de novo esta alma pesada dá de cara com a fantasia poética de Núpcias ou a poesia surreal da Malásia. E quem quer um olhar surreal e apenas esbarra com os blues esfarrapados dos Cigarettes. Enfim, este visitante sem rosto que permanece fiel tem duas faces: ou é muito amigo desta múltipla Helena ou minha alma gêmea em todos os planetas por onde perambulo em busca de terra não firme.

A estes amigos queridos e a este visitante metamorfose ou aos outros todos com quem me encontro em apenas uma parte desta estrada, agradeço em nome de todas as que imaginam ser Eu.
TEIA



E então....

Havia goteiras no telhado por onde entrava uma chuva comprida, fio de mel. Sentada na cadeira do poente, ela bordava. Vestia o casaco azul onde morava o lago, beijava o canário belga e consultava o poente aguado e cinza. Criava desenhos no céu – roda de meninas, carneiros, relógio de sol. Puxava fios invisíveis para fazer dançar os encantados do tempo.

A água escorria na vidraça em ré e o fogo respondia em dó. O soldado morto repousava rindo no retrato da antiguidade. Ela costurava vidas. Com laçadas finas ia combinando pares, descosendo amores, refazendo casas, destruindo. Dentes serrilhados cortavam o fio, sopro se apagava. Longe, na fímbria do mar, marinheiro perdia o rumo, barco se estilhaçava no rochedo. Ela molhava o pano com lágrimas sutis.

Depois sorria, retomava o bastidor e o moço alegre beijava a menina de vestido azul. Lábios macios procuravam seios, boca de gerânio, perfume de alecrim. Os dedos rápidos uniam, os dedos finos descasavam. Quando cansou de tecer, chuva se fora. Mil estrelas caíram sobre ela, constelação de brilhantes. Explodiu algumas só de brincadeira.

Sono demorava mas quando vinha latejava forte. Abandonou a teia. Canário cantou, ela soprou um beijo de mormaço cansado, despiu o casaco onde morava o lago e se deitou na trave da sala.

Dormiria mil dias e com ela o mundo. Parado. Os relógios, sem tempo. As pessoas, sem alma. Os barcos, no cais. Mares, congelados. Pares, eternamente juntos. Os assassinos com a faca na mão, gesto cortado. O grito suspenso nas bocas do medo.

De repente...

O soldado no retrato que sorria antiguidade entrou cantarolando na casa adormecida. Consertou as goteiras no telhado e a chuva derrubou torrentes na vidraça, sopa de melado.


Sentou na cadeira do poente e cantou o amor. Beijou o casaco azul onde morava o lago, acordou o canário belga e riu para o vermelho da descoberta. Desfez os bordados da espera, rasgou teias de tempo, reacendeu o fogo que cantou em dó.

Da trave do teto ela suspirou. Caiu suavemente nos braços do soldado renascido da morte.

E o mundo despertou.
FÊNIX



Planou, lentamente, sobre o solo castigado.

Terra calcinada se estendia por quilômetros, até onde seus olhos conseguiam avistar, com alguns arbustos retorcidos, enegrecidos pela seca, resistindo, ninguém sabe como, ao sol inclemente.

Raios avermelhados tingiam o azul do céu, trazendo uma ligeira brisa - ou seria ilusão de seus sentidos entorpecidos?

As asas pesavam. Ele sabia que teria que descansar, mas não achava o local apropriado. Finalmente, avistou um arbusto, onde a terra parecia menos fendida e desceu, suave, economizando as forças.

Tinha dificuldade para respirar. O ar era fornalha perto do solo. Não sentia mais a brisa, se é que ela existira.

O céu intensificou o azul próximo aos alaranjados e vermelhos febris do poente.

Pousou no arbusto e começo a separar com o bico machucado alguns galhos para a fogueira. O esforço provocou uma tonteira forte. Chegou a pensar que não conseguiria. O calor se tornara insuportável e a noite se avizinhava rapidamente. Era preciso esquecer a fraqueza.

Pouco a pouco, em pequenos vôos sofridos, levou os ramos até o local escolhido. Quando tinha o suficiente, cambaleou, as asas se arrastaram na poeira vermelha. Recuperou-se com dificuldade. Não conseguia mais voar.

Sofrendo, com dores por todo o corpo, uma só chama ardente, sentou-se sobre os galhos e aguardou.


O último raio do sol, como acontecia desde seus primeiros
ancestrais, acendeu a pira.

Os gravetos se incendiaram rapidamente e ele, imóvel, deixou que o fogo lambesse as penas, devorasse as asas doloridas, as pernas cansadas, o bico machucado, purificando o sofrimento, consumindo a angústia, apagando o passado.

Logo, apenas um monte de cinzas restava sobre a terra inclemente.

Com um último esforço de vontade, aglutinou as cinzas para a transformação, a alquimia do reinicio.
Substância alva foi surgindo do negrume, sob o olhar das estrelas indiferentes. Multiplicando-se, crescendo, desdobrando-se, até formar o Ovo.

Descansou por algumas horas.


Quando os primeiros raios de sol surgiram, ele rompeu a casca, colocou para fora o corpo vigoroso e estendeu as penas brilhantes contra o céu.

Respirou profundamente o ar da manhã, experimentou de leve as asas e, com um pequeno impulso, voou na direção do Oriente, subindo cada vez mais rápido, até se perder no azul.

Tudo permaneceu parado - a terra castigada, o vento quente, o sol abrasador.

O impossível se fez outra vez e foi embora para amanhã.

Saturday, December 24, 2005


“Nós sonhamos o mundo. Sonhamos o mundo resistente, misterioso visível, ubíquo no espaço e parado no tempo, mas admitimos em sua arquitetura tênuos e eternos interstícios de absurdo para sabermos que é falso.”
Jorge Luis Borges

Que o sonho de todos nós se incline para a felicidade. Que possamos construir com ele um mundo melhor.

FELIZ NATAL


Grande beijo a todos vocês, visitantes deste blog
PRESENTE DE NATAL




Lata Mágica

Odilene e Willam são estudantes secundaristas, residem em bairros de periferia nas cidades de Recife e Paulista, PE.
Atuam de forma independente em projetos experimentais na área da imagem - fotografia.
As fotos produzidas são artesanais, fotografadas com uma lata de leite Ninho.
Isto mesmo uma lata de leite Ninho - os sites e as fotos delessão geniais.

Vale a pena conhecer

http://latamagica.blogspot.com


Betsy Green, Arbor Vera, 1994. Silverprint toned with iron and Titanium, pinhole photo, 120x120/ kunstraum-iinnsbruck.at ( do blog Lata Mágica )

Sunday, December 18, 2005

BURACO DA ESTRELA


“Quando se agarra numa ponta e a imagem devora quem a agarra. No chão o buraco da estrela”

(Herberto Helder)
ESPELHO EMBRIAGADO
Imagem Leonor Fini
Meu rosto está lá.
Mas eu fiquei esquecida na mesa. Não sou esta mulher, com a qual o espelho tenta me enganar.

Estou em algum lugar onde esqueci a bola para que você viesse procurar. E me encontrar perdida, o vestido lívido do desejo, a boca espessa, procurando o conhecer do medo.
Lá na lembrança havia a pele do perigo que perdi nos retalhos do desespero. .

E os olhos. Os olhos de pedido que enlouquece.
Não me procure hoje com olhos de ontem. Não estarei mais lá.
Ficamos os dois na tarde do proibido e nenhum pode seguir caminho. Apenas corpos que se reproduzem através de dias. Apesar da seda que foi se abrindo em fendas, íris em que permanecem brilhos, cujo matiz esquecido já não toca o havido.

Não venha ao meu encontro neste espelho quebrado. Porque também estarei fingindo o dia que não é mais. Estarei outra e outros do não sei. Um homem que pensei entender mas foi tão cedo. Talvez tenha sido de brincar. A vida pode não ser à sério. Escondidas de nós as coisas bravas, mostrando sinais inexistentes .

Quando olho para mim no teu espelho é uma outra mulher que é. Não existimos mais. Nunca existimos. E a saudade na tarde da escondida bola, brincadeira, foi apenas uma falsa memória.

Sentado nesta mesa de um bar qualquer, num dia sem e me esperando, não é mais real do que a tarde cuja memória permanece do que não é.

Está mais profundo no passado do que estou agora neste instante em que a estranha do espelho acaba de chegar.

Sei que houve tudo e de saber vivo. Mas não de te encontrar em bares, ou de espreitar o espelho mentiroso.
De saber que em algum ponto ainda arde. Uma dobra talvez da antiga plenitude. A beleza que foi, tudo é presente.

É sempre hoje onde se quer de todo.

Saio do banheiro e fecho a porta com cuidado. Quero escapar outra vez de mim.

Na mesa você espera com olhos de ontem .Mas eu te apunhalo com a faca de sempre. O estilhaço do espelho que me viu.

Embriagado.
Imagens - Gustav Klimt
FECHANDO A CAMISA DO NOSSO AMOR


O primeiro botão foram as mãos segurando o cigarro no limite da ausência
O segundo botão, teu cabelo, que caia na testa indiferente
O terceiro botão, lábios cerrados, máquina e serpente do não dizer
O quarto botão, teu sexo frio, incapaz de alucinar, mastigar paraísos, explodir estrelas mortas
O quinto botão foi coração trancado. Linha que não permite transgressão.
No sexto botão, eis a camisa. Fechada no pescoço como chumbo.
O sétimo, querido, suas palpebras – cerradas para sempre
Onde feri.
Na Malásia é muito tarde
Para começar
O sol da noite brilha
entre pardais


Na Malásia cultivo um rouxinol
E dois faisões
Só porque hoje e sábado
E amanhã
Também.

Na Malásia
o buraco da estrela
é mais embaixo

Sunday, December 11, 2005

O OVO indica:

Rapidinhas da Oficina de Escritores – Concurso de micro textos com tema dado, escritos em até 16 horas.
Confira em:

http://rapidinha.oe.zip.net
Suburbano Coração

“O amor vai pôr os pés
No conjugado coração”
(Chico Buarque)
CARTAS DO ALFREDO
Meia Palavra basta
(Duas Cartas femininas)


Alfredo,



Eu poderia dizer o quanto tudo mudou depois que você partiu. Poderia contar que a Lady Di não late mais desesperadamente para a porta, porque sabe que não existe mais sua chegada. Que nossa Cat anda pelos cantos distraída, sem encontrar o apetite perdido. Que o Tigrinho dorme sem parar na caminha que você fez pra ele no Natal. Como fez aquela árvore linda, com o galho que achamos em Friburgo, no verão em que a gente se amava tanto que até doía. Lembra?
E como a gente ria. Como tudo era tão especial.
Eu poderia falar das nossas viagens inesquecíveis, das fotos dormindo estranhas nos álbuns inúteis. E daquelas outras que fizemos no nosso quarto, ouvindo a chuva na vidraça, pensando que o amor nunca se quebraria.
Eu queria dizer que estou inteira a sua espera. E que o vento ainda canta na varanda a música de nós dois. Que os CDs dormem apagados, sem razão, depois que você partiu.
E que as roupas no armário da memória pesam tanto que não cabem no meu coração. Poderia falar das lágrimas guardadas. Da imensa dor que me atordoa. Dos mil pequenos nadas que vivemos. Dos mil imensos tudos que perdemos.
Mas para bom entendedor, meia palavra basta:
Vol!



.......................



Alfredo,



Se você pensa que estou sofrendo depois que você partiu, pode tirar seu cavalinho da chuva. As olheiras são por causa do cachorro que não me deixa dormir, latindo desesperadamente para a porta, a espera da sua chegada da farra costumeira. Emagreci dez quilos porque não preciso mais fazer aquela comida gordurosa que você adorava e posso experimentar essas saladas deliciosas nunca antes permitidas aqui em casa.
Estou usando de novo a mini-saia indecente e o biquíni cavado que escondi no armário, mentindo ter jogado no lixo. Lembra do português que me entregava o pão de graça e seu ciúme me fazia devolver depois, morta de culpa? Precisa ver como me segue na padaria. E os outros então? Em frente ao botequim da esquina já nem passo mais para preservar minhas pernas e a minha bunda da intensidade com que me devoram aqueles olhares masculinos.
Adoro esta cama vazia onde me espalho, sem seu ronco me acordando às cinco da manhã e deixando cansada o dia todo. Acabaram, misteriosamente, os telefonemas na madrugada, o respirar feminino do outro lado e o mentiroso dizendo sempre que era engano. Eu, tonta, fingindo acreditar porque era mais fácil e porque amava tanto.
Lembra da pia que você quebrou no dia do meu aniversário, quando não quis chamar o bombeiro “porque essas coisas eu mesmo resolvo “ e que ficou tão torta que nunca conseguia segurar o sabonete? Era nossa “pia de Pisa” você gostava de brincar. Depois trouxe flores e uma caixa de bombons que dei pro gato porque estava de regime há dois meses e o “ eterno romântico” esqueceu.
Você sempre estragava os melhores momentos.
Como quando acertou no milhar do avestruz, gastando todo o dinheiro pra me comprar um colar que eu nunca pude usar. E aquela sonsa da Luzia ganhou um igualzinho de um “namorado misterioso”... .
Pois consertei a pia, vendi o colar e dei entrada naquele Fiat de segunda mão do seu Antero que a gente sempre namorava na garagem.
Agora vem chorar que está arrependido e quer voltar. Pede perdão e tudo, diz que a sem-graça da Laurinda nem me chega aos pés.
O Alibabá me trouxe seu recado, pedindo resposta urgente.
Estou respondendo, coração:
Pra bom entendedor, meia palavra basta:

Fod!
Óleo de Peroba


Meu quindinzinho,

Nunca te vi fazendo jogo tão duro com teu moreno! Já tentei ligar mil vezes pro celular e estou cansado de conversar com aquela voz de mentira. Então, estou enviando estas mal-traçadas na esperança de que tu leias e entendas o meu lado.

Aquilo que vistes no dia do piquenique em Copacabana foi apenas um mal-entendido. O Ali Babá está aí que não me deixa mentir. Ele assistiu tudinho como realmente aconteceu. Então tu achas que eu ia arriscar o nosso amor desta maneira!?... Eu sabia que ias conseguir uma dispensa no trabalho, és esperta bastante para dobrar o insuportável do teu chefe...

Acontece que eu estava tranqüilo, levando um lero com o Ali perto do mar, quando vejo a D.Laurinda se esgoelando em pedidos de socorro, o braço já quase desaparecendo no meio das ondas. Tu sabes que não sou homem de ver alguém em perigo sem tentar socorrer. Fazer o que? Nasci com este espírito cristão que tu conheces. Pois mandei o Ali Babá ir correndo chamar o salva-vidas e me joguei nas águas pra buscar a moça.

Ela saiu nos meus braços, coitada, feito um passarinho, branca como uma defunta e defunta já era por um fio, pois quando deitei a pobre na areia e colei o ouvido no seu peito, mal conseguia ouvir o coração. Apavorado, lembrei do curso de Primeiros Socorros que eu fiz lá na Pavuna e comecei a socar e empurrar o peito dela, enquanto tentava outros procedimentos. Foi nesta hora que tu chegastes. Se tivesses esperado um pouquinho mais ias ver o Ali chegar com o salva-vidas. Mas tu partiste pra cima de mim e da Laurinda e a moça quase ficou perto da morte pela segunda vez naquela manhã.
Tu precisas parar com esta cisma com ela. Não tem o menor motivo.

Eu não estava beijando a moça, meu tesão. Estava fazendo respiração boca a boca.

Acredita no teu moreno. Sou fiel a ti como ninguém.

Teu sempre,

Alfredo

******************

Alfredo,

É claro que eu acredito que você esperava que eu aparecesse no meio do teu piquenique em Copacabana. O fato do meu chefe ser um linha-dura desgraçado e esta ser a primeira vez que sou liberada num sábado é só um detalhe. Afinal, a gente sempre conta que uma ameaça de bomba no escritório pode acontecer a qualquer momento.

E porque não acreditar no Ali Babá só porque ele é seu amigo de fé e já mentiu mais de mil vezes pra encobrir suas safadezas?

O detalhe da Laurinda ser campeã de natação do Encantado Tênis Clube e de você praticar muito mal o nado cachorrinho não deve ser motivo para obscurecer a minha fé na sua versão. Câimbras acontecem até com as melhores vadias que Deus é pai.

Também não tenho nenhuma dúvida sobre sua presteza em prestar primeiros, segundos e terceiros socorros a damas desamparadas, conheço o teu espírito cristão. com as mulheres. E respiração boca a boca é prática que desenvolvestes com perfeição.

Só não entendo uma coisa, Alfredo, a moça quase morre afogada e não se forma nem um grupinho pra tentar ajudar? Cadê o resto do povo da Vila que não veio nem dar uma espiadinha na provável defunta? Ta certo que a Laurinda não está com esta bola toda com o pessoal, mas não surgiu nem uma alma caridosa pra ajudar você a ressuscitar a moça?
Ela deve estar mal no filme, coração.

Só um pouco menos do que você no meu.

PS – As flores eu joguei no lixo, mas os bombons vou dar pro Manuel da padaria. Dizem que ele faz uns Primeiros Socorros divinos e, de repente, posso necessitar de uma respiração boca a boca.
PS2 – Estou mandando pelo Ali Babá um vidrinho de óleo de Peroba. Talvez você precise retocar a fachada depois de tanto esforço.

Sunday, December 04, 2005

Blues da Piedade


“Como varizes que vão aumentando

Como insetos em volta da lâmpada”
( Cazuza )


Foi no tempo em que o Mr Dog tocava bateria nos Cigarette Blues.

Mr Dog era amigo de Marina e parecia de outro mundo, distante do nosso. Andava sempre bem vestido e cheirado. Cocaína pura. Desconfio que era traficante. Nunca falou sobre isto ou qualquer coisa da sua vida, trancado no mundo blues do seu desespero.
Os meninos de rua gostavam dele, sabe-se lá porque. Pensei que fosse o pó, mas era mais. Andavam atrás como ratinhos, encantados pela batida, siderados no blues.

Mr Dog amava Cazuza. Tinha a ver.

E Marina, á moda dela, também amava Mr Dog. Uma corda de caranguejos, feito aquela das feiras de Pernambuco, todos nós enredados uns nos outros.

De vez em quando, ele deixava os meninos assistirem aos ensaios.

Cry me a river... Marina cantava, totalmente Holliday. A bateria acompanhava segurando os gemidos da guitarra de Billie e nós seguíamos junto, vendo os olhos brilhantes na viagem. Do pó e da música. Pobres cometas desconhecidos, andarilhos da rua.

Olhavam para Marina e seus cabelos dourados, como a diva que ela desejava ser. Todos nós, príncipes e princesas de fancaria.
Mas só Mr Dog era Deus, capaz de arrebentar nos pratos, estraçalhar o ouvido com o som que violentava a alma.

“ Dentro da tua orelha fria... Dizer segredos de liquidificador”

Cazuza na veia, codinome Beija-flor.

“Não responda nunca, meu amor (nunca) Pra qualquer um na rua, Beija-flor”

Ficavam ali, um ou outro, atrás do pó e em volta da música. A corte esfarrapada de Mr Dog, o escolhido de Marina e sua voz rouca de Billie: Summertimes.

Uma noite, fazia muito calor, a gente saiu para os cigarros e o café. A cidade era grande, muitos bares, afundamos na escuridão. Tequilas, camparis, caipirinhas, vodka, cerveja, rum. Conversas estilhaçadas. Marina beijou Mr Dog na boca, não acreditei. Billie morria com a mesma dor com que eu olhava para ele. Corda de caranguejos. Mimi cantarolava, descolou um caminhoneiro. Não sei como, descobria sempre algum, tinha faro.

Voltamos cansados e bêbado. As ruas subitamente escuras e quietas. Pisávamos no silencio, encantados.

Uma mão apareceu do nada, enfiou o revólver na cabeça de Mimi.
O grito dela estilhaçou a noite e nos fez parar.
Ao redor de nós, rapazes mal vestidos, debochados, formando um círculo que aprisionou o grupo.

- Passa a grana, ou a gente apaga a coroa aqui... rápido, rápido...

Olhei para Mimi e só consegui pensar – coroa... logo Mimi . Tinha vontade de rir, de nervoso, medo, dor.
De repente, Mr Dog quebrou o encanto.

- Para com isto, mané, são meus amigos.

A arrogância de homem se esvaiu. Virou outra vez menino.

- Mr Dog! Foi maus, parceiro, ta liberado.

Fez um sinal pros outros e já iam saindo quando viu a guitarra de Billie.
Humilde, se aproximou e perguntou:

-
Dá para tocar uma música pra nós? Se não for muito incômodo...

De cavalheiro para cavalheiro. Aceitamos.
Billie dedilhou a guitarra, fez a introdução:

“Agora eu vou cantar pros miseráveis...Que vagam pelo mundo derrotados...Pra essas sementes mal plantadas...Que já crescem com cara de abortadas...”

Mr Dog cantou imitando Cazuza:

“Vamos pedir piedade... Senhor, piedade... Pra essa gente careta e covarde...Vamos pedir piedade”

Os meninos ouviam, siderados. A guitarra gemia, pontuava...

“Senhor, piedade...Lhes dê grandeza e um pouco de coragem...”

O som ecoava entre as vitrines escuras, cercava as latas de lixo, escorria pelos bueiros, rondava as esquinas, colchonetes estragados, cobertores rasgados. Subia pelos rostos sujos e sérios, iluminava a todos nós. Sóbrios.

“Vamos pedir piedade...Pois há um incêndio sob a chuva rala...Somos iguais em desgraça

Uma leve garoa começou a cair. Iguais sob a chuva rala.

Vamos pedir piedade...

A guitarra gemeu ainda uns momentos, depois se calou. Ninguém disse nada.
Voltamos devagar, Mimi amparada por Billie.
Durante a madrugada, acordei com vozes alteradas. Olhei o corredor e vi Mr Dog saindo do quarto de Marina.
Nunca mais soubemos dele e Marina passou a beber sem parar. Pois há um incêndio sob a chuva rala.
Minha arma é a palavra

Em memória dos passageiros do ônibus incendiado na Penha, na cidade de São Sebastião flechado do Rio de Janeiro

Dores


Trabalhara o dia inteiro na faxina com aquela faca enfiada, impossível esquecer.
Calor, fila enorme, ônibus atrasado, tudo rotina. A dor era nova, lancinante.

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O ar condicionado zumbia leve. Na janela as palmeiras e o mar brilhante
Agulha fina para calar a tortura. O dentista é gentil, sorriso branco
Medo. Contrações nervosas das pernas.


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O ônibus chegou, finalmente. Em casa, tomaria chá de ervas, mais um comprimido. Meu Deus, quanto tempo para se livrar desta dor? Na emergência arrancam o dente direto.
Duas jovens fazem sinal.. O motorista freia bruscamente. Três homens entram
A voz brutal anuncia: Todo mundo pro fundo, rápido, rápido
Minha Nossa Senhora, assalto agora, não.!...
Medo. Contrações nervosas nas pernas.


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Mãos enluvadas trabalham delicadamente. A hora da extração chegou. Pânico.

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Do lado de fora, armas impedem a saída.
Mãos enluvadas espalham a gasolina, meticulosamente. A hora chegou. Pânico.


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Os dentes foram vencidos.
Vermelho de sangue na mão do dentista em Ipanema.
Negro de fuligem na carcaça do ônibus na Penha.


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A dor acabou.
Foto Globo Online

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