Friday, October 20, 2006

Pintura: Leonor Fini

MALA ALMA


Arrumou a mala, separou os vestidos mais lindos, maquiagem de estrela, cabarés.

Contornou os olhos com lápis escuro, ressaltando o brilho, rímel, purpurina nas pálpebras, saudade... mas é carnaval, não me diga mais quem é você... um dia eu vou sair daqui para bem longe, lembra da canção?

Pés cravados na terra, crestados, um som de atabaque, pretos velhos descendo, dançando como figuras negras ao redor do fogo... noite de Veneza, máscaras... mas é carnaval, não me diga mais quem... coração bobo, terra roxa do cacau , do café, milho, mandioca, a infância correndo atrás do pião. Vou embora.

Colocou cada pedaço de jornal velho, recortes, figuras, palavras, cada anúncio, convite, papel rolando no vento, brisa de maresia, lembra da canção? Mas é carnaval não me diga mais... Não diga nada. É adeus.

E um pedaço de fita, um cachorro de louça quebrado, ventarola amassada. Bola de ping-pong queimada por cigarro, uma noite de lua, beijo roubado, tua boca, ah tua boca de mel e de pecado, tua boca que um dia... mas é carnaval não me diga mais quem... separou os mãos, lindas mãos masculinas que acariciavam, colocou os pés que fugiram, a boca mentirosa, os olhos fingidores.. mas é carnaval não me diga mais... nunca mais... a música alucinante a banda, o sax, o batuque, milhões de pomba-giras dançando ao meu redor. Viajar.

Colocou o corpo amado, a fantasia, máscaras de cetim, teu nome, ah, teu nome que esqueci... mas é carnaval não me diga... por ti vou embora... mas é carnaval... não é mais.

Em cima de tudo a alma, bem passada e engomada.

A mala derrubou a cadeira, furou o assoalho, afundou na terra - terra crestada, milho, algodão. A mala atravessou a rocha, o lençol freático, as camadas tectônicas, trespassou o planeta, mergulhou na imensidão escura.

Alma pesa demais. Demais.

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