Sunday, November 30, 2008

A ESTRADA

“Não há caminho, caminhante, o caminho se faz ao caminhar”
Imagem : trabalho sobre quadro de Paul Christiaan Boos


Esqueletos de pássaros pressagiam o enorme silêncio. Bois descarnados brilham ao sol.
Nenhuma indicação na estrada. Apenas a marcação dos quilômetros para o topo. O suor escorre dentro da gola, umedece o pescoço causando arrepios. Não há árvores, só milharal até onde a vista alcança.
Subo com dificuldade, um pé diante do outro, olhando para o céu, nunca para o vale. Céu azul, sem nuvens. A claridade dói nos olhos, mas insisto.
Pareço entrar na imensa bola sobre mim e isto me dá ânimo, sugado pela lâmina curva do mundo verde e bege.
Lágrimas impedem a visão, tropeço, caio.
Olhar para o alto é perigoso, repete meu senso comum.
Visualizo as pedras da estrada. Antes pareciam amigas, agora incomodam, cortam a sola do calçado, apodrecem minha determinação alagada de suor.
Ignoro a dor, uma perna, outra perna, subida cada vez mais íngreme. Campos desaparecem, surgem paredões, cortes abruptos para o vazio.
Tento esquecer a paisagem, não resisto, chego na borda e olho.
Vertigem.
Os campos cortados por veios amarelos, estradas bifurcantes, esqueletos alvos faiscando ao sol.
Não há som, nenhum vento. Nada.
Nem dos meus passos na luta contra o cascalho adensado.
Prossigo. Mais teimosia que vontade, esgotado.
Tento olhar o céu novamente, o azul laminado machuca, enxugo as lágrimas com a manga, olho para as pedras e o crânio pequeno de um animal indistinto.
Não sofro.
Minha determinação é maior. Impossibilidade de retroceder, paixão de continuar, atingir o topo que ainda não consigo ver mas existe.
Um pé diante do outro, uma perna levantada, outra arrastada sobre as solas feridas, o calçado roto.
Olhos doendo, tiro a camisa empapada, espero uma brisa que não vem, um canto que não existe.
Continuo. Sem fé, sem coragem, sem medo. Subindo. A respiração difícil. Aspiro um ar de toneladas, os pulmões doem no esforço, a garganta seca se contrai, a língua uma fita de couro ardendo, mastigo o vazio.
De repente, o topo. Não há mais estrada, só céu engolindo o mundo.
Ando com mais força, as pedras rolam sob mim, deslizam, caindo sem barulho.
Finalmente paro diante do vazio. O precipício vertiginoso. Respiro com dificuldade. Cheguei.
Volto os olhos por instinto e vejo a placa, quase encoberta por milhares de ossos ressequidos:
Tudo termina aqui.
Minha carne começa a tremer, o jogo é perverso demais, não vou aceitar.
O abismo é a continuação, o abismo vai me redimir, me salvar das garras do inevitável.
Meu corpo desce vertiginoso, depois plana e cai suavemente no milharal.
Ar puro inunda os pulmões. Choro de alegria antes de ver o novo cartaz:
Aqui tudo começa.

************

"Não sabemos sequer o que somos, quanto mais o que é a realidade exterior da qual somos parte” (Philip K. Dick em Valis)

“Disse assombro onde outros dizem apenas hábito.” ( Borges em Quase Juizo Final)




0 Comments:

Post a Comment

<< Home


Web Hosting Services