Monday, December 29, 2008

Que venha 2009!


"O tempo é um rio que me arrebata, mas eu sou o rio
É um tigre que me destroça, mas eu sou o tigre
É um fogo que me consome, mas eu sou o fogo.”
(Jorge Luis Borges)
Imagem: Maria Helena Bandeira sobre quadro de sua autoria



E o tigre de mil bocas rolou, estilhaçando o solo.
A cotovia cantou em algum lugar do Norte.
E a fumaça subiu enquanto assavam búfalos
E galos fugiram do amanhecer, mudos de espanto
E Pedro negou dez, Judas beijou quarenta,
E todos os jornais negaram infinitas vezes.
E ouro escorreu pelas mãos ávidas dos poderosos
Enquanto o tigre de mil bocas, faminto
Levantou seu dorso esquálido
E com uma só patada,
destruiu, engoliu, arrasou
E comeu
Ricos e pobres, brancos e negros, judeus e palestinos
americanos e árabes, europeus e latinos,
oriente e ocidente
oceanos e nuvens
O tigre de mil bocas digeriu o mundo
Depois dormiu cem anos esperando o Messias
.



TEIA



E então....

Havia goteiras no telhado por onde entrava uma chuva comprida, fio de mel. Sentada na cadeira do poente, ela bordava. Vestia o casaco azul em que morava o lago, beijava o canário e consultava o céu aguado e cinza. Criava desenhos – carneiros, roda de meninas, relógio de sol. Puxava fios invisíveis para fazer dançar os encantados do tempo.

A água escorria na vidraça em ré e o fogo respondia em dó. O soldado morto repousava rindo no retrato da antiguidade. Ela costurava vidas. Com laçadas finas ia combinando pares, descosendo amores, refazendo casas, destruindo. Dentes serrilhados cortavam o fio, sopro se apagava. Longe, na fímbria do mar, marinheiro perdia o rumo, barco se estilhaçava no rochedo. Ela molhava o pano com lágrimas sutis.

Depois sorria, retomava o bastidor e o moço alegre beijava a menina de vestido azul. Lábios macios procuravam seios, boca de gerânio, perfume de alecrim. Os dedos rápidos uniam, os dedos finos descasavam. Quando cansou de tecer, chuva se fora. Mil estrelas cairam sobre ela, chuveiro de brilhantes. Explodiu algumas só de brincadeira.

Seu sono demorava, mas quando vinha latejava forte. Abandonou a teia. Canário cantou para dentro, ela soprou um beijo de mormaço, despiu o casaco onde morava o lago e se deitou na trave da cozinha.

Dormiria mil dias e com ela o mundo. Parado. Os relógios, sem tempo. As pessoas, sem alma. Os barcos, no cais. Mares, congelados. Pares, eternamente juntos. Os assassinos com a faca na mão, gesto cortado. O grito suspenso nas bocas do medo.

De repente...

O soldado morto no retrato que sorria antiguidade entrou cantarolando na casa adormecida. Consertou as goteiras no telhado e a chuva derrubou torrentes na vidraça, sopa de melado. Sentou na cadeira do poente e cantou o amor. Beijou o casaco azul onde morava o lago, acordou o canário belga e riu para o poente vermelho da descoberta. Desfez os bordados da espera, rasgou teias de tempo, reacendeu o fogo que cantou em dó.

Da trave do teto ela suspirou. Caiu suavemente nos braços do soldado renascido da morte.

E o mundo despertou.
Imagem: Camille Pissarro

Mas se uma verdade individual é tudo que um livro pode conter, resta-me aceitar escrever a minha. O livro das minhás memórias? Não. Se a memória é verdadeira, ela o é enquanto não se fixa, não se encerra em uma forma. O livro dos meus desejos? Estes também só são verdadeiros quando seu impulso opera independentemente de toda vontade consciente. A única verdade que posso escrever é a do instante que vivo.
(Ítalo Calvino)


FELIZ ANO NOVO


Para os amigos - os atuais, os ex, os futuros. Para quem curte e quem odeia finais de ano. Para quem acredita em tempo fatiado e quem é agnóstico. Para os ateus e os crentes. Para quem vem aqui e lê meus textos ou apenas passa pelas ilustrações. Para todos.

Cultivo una rosa blanca,
en julio como en enero,
para el amigo sincero
que me da su mano franca.

Y para el cruel que me arranca
el corazón con que vivo,
cardo ni ortiga cultivo:
cultivo una rosa blanca.

( José Marti)

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