Tuesday, April 25, 2006



Segundo Lugar:

PASÁRGADA, AFINAL

Maria Helena Bandeira

O cavalo dava mostras de cansaço, quando as primeiras tochas anunciaram a cidade, entre as montanhas. Eu mesmo já não sabia quem era, não fosse a canção que ainda permanecia na mente entorpecida:

"Vou-me embora pra Pasárgada."

Com passadas vagarosas, vencemos a estrada iluminada, entre montículos da neve que ainda teimavam em cair.
Minha acompanhante também parecia no limite da exaustão, balançando na sela.

Surgido da névoa úmida, um oficial nos barrou a passagem, segurando o cavalo da mulher

- Quem sois vós, cavaleiros, invadindo a esta hora tardia o território de Pasárgada?
- Sou Joana - ela respondeu com altivez
- A louca de Espanha? O guarda respondeu com uma reverência.
- Sim - respondi - rainha e falsa demente.

O cavaleiro nem perguntou meu nome e nos deixou passar, avisando aos outros
- É o amigo do rei.

Atravessamos as portas levadiças, acompanhados pela escolta.

Eu faço versos como quem morre
de desalento, de desencanto

No meu quarto me esperava a mulher que eu sempre quis, nesta cama que escolhi.
Pasárgada, afinal.

Entre estas Índias de leste e as Índias ocidentais, meu Deus que distância enorme quantos Oceanos Pacíficos, quantos bancos de corais, quantas frias latitudes atravessei sem pensar...

E no entanto estou aqui, diante da minha Estrela da Manhã, ardente como um soluço sem lágrimas com a beleza das flores quase sem perfume, a pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos e a paixão dos suicidas que se matam sem explicação.

E em meio do pente, a concha bivalve num mar de escarlata. Concha, rosa ou tâmara?
Terei a mulher que eu quero nesta cama que escolhi.

Lá fora, o vento varria as folhas, o vento varria os frutos, o vento varria as flores...Gemiam ondinas nos repuxos das fontes. Faunos aparecem.e salamandras desfalecem nas sarças, nos braços dos bruxos.
Não posso crer que se conceba do amor senão o gozo físico. As almas são incomunicáveis. Deixa o teu corpo entender-se com meu corpo. Porque os corpos se entendem, mas as almas não. E a volúpia é bruma que esconde abismos da melancolia...

Ao longe a lua se perde. Ao meu redor, estão todos dormindo, dormindo profundamente. E eu sem família religião ou filosofia; mal tendo a inquietação de espírito que vem do sobrenatural, eu quero a estrela da manhã. Pura ou degradada até a última baixeza.

Pasárgada, afinal.

A mesa posta, a casa pronta e cada coisa em seu lugar A aurora apaga-se e eu guardo as mais puras lágrimas da aurora. O dia vem, e dia a dentro continuo a possuir o segredo grande da noite.

Não espero o sol claro e me dirijo ao palácio.

- Licença, meu rei.
- Entra, Bandeira, você não precisa pedir licença.

6 Comments:

Anonymous Anonymous said...

Majestosamente divino. Prosa e poesias. Seu avô deve estar rindo à toa, de orgulho.
beijos,
Tom

11:08 AM  
Anonymous Anonymous said...

MUITO BOM! Os textos todos ficaram mto legais nesse teu site tb! Obrigado!
Beijos
Udo

9:57 AM  
Anonymous Anonymous said...

Majestoso é uma palavra muito apropriada. Vou repeti-la desde Madrid, coração da Espanha.

4:16 PM  
Anonymous Anonymous said...

Gosto de Bandeira... Do homem, mais que do avô, do avô mais que da neta, da neta mais que da poesia.Pois, sem o homem não haveria o avô, sem o avô a neta não existiria e sem a neta não haveria poesia.
Te beijo e me orgulho de tê-la como amiga.
Mar

6:15 AM  
Anonymous Anonymous said...

Lindo demais,Mhel. Vim correndo, tropecei nas pedras do Drummond, me perdi pelos caminhos, fiquei meio sem bússola, e perguntava a todo mundo: Onde fica Pasárgada?
Até que cheguei, pois o tumulto aí fora era imenso.
Parabéns pela beleza que postaste aí e pela homenagem ao Bandeira que tantas maravilhas nos deixou.
Que bom, quando as pessoas são lembradas desta forma,né?
beijão

3:30 PM  
Blogger Camila Fernandes said...

Seus textos são uma mistura de lirismo refinado e bom-humor... quando veremos um livro seu?
Beijão.
Camila

11:09 AM  

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