Thursday, April 23, 2009

De muito longe, entre as bétulas


“Porque eu te amo e porque eu não te amo é que nos amamos” ( Mheta Thet Agar - livro das Contradições, volume 3 , página 8.045 )


Eu te matei mil vezes. Em Órion, Em Alpha, em Vehr. Traspassei teu corpo nu com a espada flamejante em Ângelus e o crucifiquei no antigo carvalho druida da Cornualha. Eu atirei uma flecha em ti entre os índios Navajos e peguei teu coração palpitante no ritual secreto das mulheres de Elêusis. Destruíste meu corpo outras mil, nas cavalgadas e lutas, entre as silenciosas estrelas de Luthor, nas planícies geladas de Alhambra. Incontáveis anos. Mas estou cansada.

Aqui, no alto, com a mão na arma, vejo tua pele brilhando e não sinto nada. Nenhum desejo de destruição, nenhuma sede de teu sangue quente, nenhuma fome de tua carne branca. Somente um cansaço imenso, abissal, um cansaço que percorre os astros indiferentes, que me faz adejar sobre todas as coisas – navio celeste desgovernado, estrela velha prestes a se extinguir.

Nosso jogo durou tanto tempo que esqueci onde começou. Se é que começou e não foi sempre assim, nos destruindo infinitamente, renascendo para morre, matar, devorar.

A mão está firme, mas eu hesito. Teu vulto se destaca entre as outras – mulheres que não são – aquelas que acabarão - cinza espalhada sobre campos ao amanhecer.

À luz da lua elas dançam, bailarinas delicadas num teatro de sombras, passam girando e eu as destruo uma a uma e te mantenho vivo. Sinto teu desespero, a marca de tua esperança de que continue nosso jogo perverso e o sentimento é como a água escura da piscina inerte. Parado. Embalsamado por perfumes que vem de longe, muito longe, onde não estamos mais.

Tu não entendes porque desrespeito nosso jogo, porque deixo de te matar já que é minha vez, porque te poupo e estrago os milhares de anos em que nos perseguimos com amor e ódio. Tudo que não pode haver é esta indiferença opaca, este tédio vazio com que olho para as dançarinas que abati. Todas.

Menos a ti..

Quando as sombras se esgotam, quando apenas um vulto permanece sobre o chão úmido, entre o perfume das bétulas, eu, lentamente, viro a arma para o meu peito.

E atiro.

Teu grito ecoa em meus ouvidos, mas é muito tarde para nós. Perdemos o jogo, querido e ontem será, finalmente, eterno.



2 Comments:

Anonymous Nédier said...

Mhel querida,
"De muito longe, entre as bétulas"
despertou em mim sentimentos doloridos. Viver dói, porque a vida existe para ter um fim e não nos acostumamos com esta realidade.
Beijo,
Nédier

7:30 PM  
Anonymous Anonymous said...

palavramada na bocaberta docescorrendo toda framboesa delicada e tênue,saborosa,apetitosa,fatiadentada que nem se corta bolo com espátula e leva a criança toda folialegre sonhar contos de fada num mundo de terror e terrorismos.

11:08 AM  

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