Thursday, April 23, 2009

USAR O TEMPO






Entrei na cabine e esperei.

Precisava de muito tempo, um tempo infinito para conseguir entender. Cliquei em milhares de anos atrás, especifiquei as coordenadas e sentei. Logo tudo ficou confuso como acontece nos pedidos extraordinários. A porta da cabine se abriu alguns segundos depois.

Estava no meio do nada. Para onde olhasse só via estepes geladas que um vento fino fustigava. Mas não sentia frio, claro. Não há sensações corporais térmicas no Tempore.

Andei um pouco, perdida, olhando o céu intensamente azul, de uma tonalidade que já não existia na Terra há muitos anos. Era agradável estar ali, sozinha na planície gelada, debaixo de um céu de cobalto.

Caminhei sem destino, recitando os mantras. Parecia tudo igual e, só por isto, podia ser diferente dentro de mim.

O tigre apareceu de surpresa. Enorme, uma criatura fabulosa, de músculos elásticos e fortes, esgueirando-se sobre o chão gelado com graça lenta. Duas grandes presas alvas sobressaiam dos lábios que uma língua vermelha e úmida lambia de vez em quando. Aproximava-se de mim, mas eu não tinha medo. Esperava.

O animal pareceu hesitar e eu sentei, abrindo os braços e ainda recitando os mantras. Ele foi chegando cada vez mais perto, lentamente, os olhos dourados fixos, hipnóticos.

Eu também o fitava, calma. Desta vez não haveria desistências.

Repetia os mantras cada vez mais alto e a força deles parecia impulsioná-lo para frente. Os olhos dourados já estavam a uma distância de dois metros, avaliando, algo tensos, famintos. A língua se tornara nervosa, mas o tigre se quedara, estático, todo ele uma tensão absoluta, preparando o bote.

Com graça e agilidade felinas, ele saltou e eu caí, espalhando pedaços de gelo que se estilhaçaram com o choque. O peso dele me tirou, por um momento, a respiração. Fiquei ofegante, sentindo suas enormes patas no peito, os olhos amarelos bem próximos do meu rosto.

Indagadores talvez? Não tive tempo de descobrir. Ele abocanhou meu pescoço com as presas fortes, ouvi um estalo, uma nuvem escura cobriu meu olhar. Ainda percebi, como num sonho, o sangue se separando do corpo e formando um rio vermelho que tingia de cor a alvura uniforme da estepe gelada.

Quando regressei à cabine, uma estranha paz me invadiu. Podia voltar ao meu verdadeiro tempo. Estava pronta para enfrentar o que me esperava lá fora.

Abri a porta. Chovia como sempre. As gotas se refletiam nas luzes dos altos edifícios de cristal. Pessoas passavam por mim, indiferentes e eu a elas.

Só que agora eu tinha um tigre, tinha uma morte, tinha uma experiência verdadeiramente minha.

Suicídios não são permitidos nesta época, mas usar o tempo sim.




1 Comments:

Anonymous Nédier said...

Mhelzinha,
Ter experiência verdadeiramente nossa é o mesmo que ter um tigre dentro de nós. Ninguém vê, mas não importa. Lá está ele, seu potencial de vida e de morte, sua força e sua beleza. É arriscado viver, pensamos às vezes em desistir, mas o tempo é onde estamos, é o nosso território, percorrê-lo é a nossa sina.
Amei este conto.
Beijo,
Nédier

7:41 PM  

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