Tuesday, September 27, 2005

Perfumado de Canela

Quando entrava estavam lá, perfilados.
Você pode não acreditar, mas mudavam de posição durante a noite.

Mãe dizia que sou miolo mole, era velha, ninguém ouvia, conversava com as plantas. Planta fala? Claro que não. Miole mole. Dormia com o canário na cama, o pobre morria esmagado um dia. Todo dia.

Todo dia era de missa.

Sei não, tem vento arredondado nas beiradas e pardais mensageiros. Eu suspiro de tédio e se não fossem eles, me enviava daqui, num envelope rosa. Perfumado de canela. Você acredita?

Mãe e pai eram beatos, beija-mão de padres. Um boneco careca e caradura como o outro. Mas de noite se ria.

Quando o papel acabava, a cola, Sebastian me dava. Relava mão em mim, ficava quieta. Quero é fazer gente, mas não acabada, gente que fica muda e se move de noite, lentamente. Quero é construir pessoas que me amam longe das missas e dos dedos. Sebastian ria safado, eu ficava séria.

Tudo negócio. Nada além do apalpado e consentido.

Tem um deles também, coisa ruim, levou chute, ficou quebrado. Não rela mão em menina nenhuma das minhas. Sebastian de papel, coisa ridícula. A noite é de papoulas e relógios.

Tenho medo, você sabe? medo dos vivos.
Que me descubram no pecado deles, na alegria. Longe das missas e das rezas, perto do alecrim do seu cheiro, Renato, olhos de bola azul, me bolinando. De noite eu sou rainha dos meus pares, abro em flor, margarida, rosa, papoula, lagartas.

Borboleta suspensa esperei a hora.
Ela veio e não sobrou pedra.

Não tive culpa. Não mesmo. Criei todos pro bem, mas a revolta clama.

Deve ter sido isto. Sangue de Cristo tem poder sobre os bonecos não.
Padre no poço. Mãe e pai na cozinha e eu, quem sabe agora? voando pela janela andorinha.


Em envelope rosa. Perfumado de canela.

Andorinha. Em envelope rosa, perfumado de canela

Monday, September 19, 2005

Circularidade

A Promessa do Tigre


As grades enferrujadas rangeram sob o peso da mão, rasgando os galhos que a prendiam. Anos de decadência cobriram de pátina verde o muro e o santuário. No jardim esquecido um odor de eternidade, bafio úmido de decomposição e renascimento.
O esplêndido El Tigre repousava, diante dos seus olhos deslumbrados.
Apesar do castigo dos anos permanecia o brilho da esmeralda dos olhos, onde os últimos raios de sol desfaleciam, anunciando as primeiras estrelas.
O peregrino caiu de joelhos.

****

A estrada arrastava-se, interminável reta poeirenta. O sol causticante amainava seu rubor num poente vermelho que se confundia com a terra ao redor. Trezentos e sessenta graus de fogo.
Aos poucos, firmando a vista com cuidado percebeu a sombra formada pelas árvores do santuário. Depois de um dia inteiro de caminhada, ia conhecer El Tigre. Estava chegando, afinal.

****

Na fornalha do meio-dia, o amarelo transformara as árvores ressequidas em fantasmas negros contra seu brilho cegante. Nem uma folha se movia.
O calor era absoluto manto de espessa córnea. Não sabia como chegar lá. Não havia mapas, não havia rotas, ninguém nunca voltara do santuário. Nem mesmo tinha certeza se existia, realmente, um santuário ou fora um sonho do seu coração a palavra de El tigre no seu ouvido.
Mesmo assim , preparara o manto e o cajado e estava ali, caminhando em direção a ele.

****

Amanhecia, quando retirou os objetos do altar. Bebeu da água da fonte, Dobrou os panos sagrados e separou os pães secos e o cantil para a longa viagem.

****

A noite estava silenciosa de presságios. Pela última vez encarou o tigre, o desânimo encerrando seu coração. A estátua, uma cópia em miniatura daquela que deveria existir no santuário perseguido, brilhava à luz das estrelas e das inúmeras velas ao seu redor.
Com as mãos cansadas, abriu o livro tantas vezes visitado, tantas vezes manuseado e repetiu a invocação.
Um arrepio percorreu seu corpo magro, acentuando os mistérios
Com a voz de séculos perdidos, El Tigre sussurrou no seu ouvido
Vá em peregrinação ao Santuário de Ilah Khaden. Lá encontrarás o que procuras – a vida eterna, que significa o Eterno Retorno ao ponto de partida.

O peregrino caiu de joelhos.

Foto do Portão velho de Leila S http://cadernos-da-belgica.blogspot.com



Foto Ivan de Almeida – http://ivandealmeida.multiply.com/ ( cedida pelo autor )

Alguém

Apague a luz da realidade

Quero a fantástica tormenta
Da inverdade

Na Malásia

Na Malasia politicos são corvos
Devoram carniça nas praias
e vomitam
lindos poemas de amor
sem nenhum sentido

Na Malasia todos os crimes
são capitais
de paises imaginários.

pintura- Leonor Fini

Tuesday, September 13, 2005

Dia do Não Quero

Hoje é meu dia de dizer não quero
Dia de sol escuro e maré baixa
Hoje é meu dia de dizer sou contra
Dia de ser partida e incoerente
Não quero perdoar nem ser perdoada
Não quero amar não quero ser amada
Quero ser implacável e sem pena
Quero ser bem cruel feroz veneno
Não quero ser sutil nem ser serena
Hoje é meu dia de concreto e faca
Hoje é meu dia de parede e aço
Hoje é meu dia de dizer não faço
Hoje é meu dia de dizer não quero
Nem ser boa, nem branda ou generosa
Nem gentil ou fantástica, ou charmosa
Quero ser irritada e sem paciência
Insuportavelmente displicente
Quero rasgar papéis e esquecer nomes
Quero me desligar de toda complacência
Quero não perdoar nem não ter piedade
E dizer coisas duras e maldades
Quero lembrar de tudo com veneno
Quero dizer que não com pouca pena
Quero não ser estável nem serena
Quero ser odiosa, e pecadora
Hoje eu não quero nada de piedoso
Hoje eu não quero o sim da covardia
Quero o não implacável da coragem
Quero o combate rude da impiedade
Quero me amar apenas com vontade
Com total e imortal sinceridade
Quero apenas a mim
em toda a cristandade
Quero ser egoísta com vontade




Réquiem por um Deus Morto

“requiem aeternam dona eis” ( início do ofício dos mortos- liturgia católica )


Saio para a rua escura...
Nada. Nem um movimento.. um suspiro de brisa.. nem um ligeiro frêmito das folhas ao suave murmurar da manhã.

O silencio pesava espesso, palpável, absoluto.
Podia ouvir o enorme não som que se espalhava até os limites de minha percepção.

E nem a mais suave cor da pétala delicada, o brilho dos seus olhos na penumbra. Nem o vermelho delicado das tarde brilhantes, nem o azul escuro da noite. Nem a pequena luz dos vendedores de algodão doce, nem o luzir alvo sob o vidro sujo, nem as pálpebras claras que vedavam seu olhar, nem o verde fugidio da sua íris amada.

Andava sem destino e não havia uma coisa para tocar.

Sua pele onde afundavam meus dedos ávidos, a carne embriagadora, a dureza dos dentes. Ou os lábios com a resistência macia. E a aspereza das folhas que caiam no outono, os pés pisando seus quebradiços galhos, a mole resistência da lama no inverno, o agudo dedo dos ramos sobre meu rosto nos dias de sol quente e paixão.

Sumira o gosto das amoras, os morangos doces, as mangas maduras, cujo sumo escorria pelo queixo , prolongando o sabor na língua. Sua língua, o gosto da sua língua ardente.

Por toda parte apenas o Nada absoluto.

Caminhei como louca através daquele tudo de negações, esperando a hora.

Não havia estrelas, nem noite, nem céu. Não havia sol, nem luas , nem ventos.
Só a solidão de ser.

Uma voz se levantou do Absurdo – Nietzsche está morto.
Era Deus.
Eu O matei, e O matei e O matei.

Ele sempre renascia, mas dentro de mim eu tinha certeza.
Estava morto.





Saturday, September 03, 2005

Azul Turquesa

Em algum lugar do sujo,
engordurado e pobre balcão do bar
existe um universo,
galáxias girando para o ralo cósmico do absurdo.
É tarde, é muito tarde para o Coelho da Alice. Nós sonhamos o mundo , como dizia Borges

O Ovo Azul Turquesa e a Galáxia

Tenho uma fome abissal, uma fome coletiva e individual, uma fome de séculos de injustiça social e de carência individual.

Posso resumir dizendo que minha fome mais constante é de justiça, entendida num sentido absoluto, o que é um paradoxo para uma relativista. Mas acho que o relativismo surgiu em mim, justamente por esta necessidade de ser justa com todos os lados da questão, não apenas com uma suposta verdade.

Desde muito pequena eu percebi que verdade é perspectiva e que tudo, como diz o Eça, no final da Relíquia, é uma desesperada coragem de afirmar. Dela nascem todas a grandezas e as injustiças.

Mas tenho fome individual de paixão, de emoção, de sair da prisão estreita de uma descrição de mundo. E de conseguir que a pessoas amem e se identifiquem com meus textos e personagens. Meus passionais Alfredos e meus doloridos Cigarette blues, meus universos longínquos e os suburbanos. As estrelas e Cachambi. Billie e Star Wars.

Nos confins da galáxia e aqui do lado, no bar da esquina,onde o ovo azul turquesa pisca para mim. É por aí. “



(Trecho da minha entrevista ao Marcelo Ferrari na comunidade Caneca na Rede)

http://www.orkut.com/CommMsgs.aspx?cmm=1135552&tid=14399793


Thursday, September 01, 2005

Protesto contra a extinção do Balaio do Trevisan

Carta enviada à webamaster do site do SESC

Sr webmaster,

Como escritora e amante da literatura, quero deixar registrado o meu protesto contra a extinção, pelo SESC, do Balaio e da Oficina do escritor João Silvério Trevisan.

Frequento há uns dois anos o Balaio e tem sido muito útil para a minha evolução na avaliação crítica e nos próprios projetos literários. Não fiz nenhuma das oficinas, mas vários amigos fizeram, com resultados excelentes e só tem elogios a fazer ao método e à pessoa do Trevisan, de resto um escritor excelente que abrilhanta o site do SESC.

Lamento esta decisão, na contra-mão do sentido que deveria nortear os caminhos desta instituição na área da literatura. E peço encarecidamente que revejam esta posição.

A burocracia não pode entravar o crescimento cultural do nosso povo já tão sofrido.

um abraço,

Helena

( Maria Helena Bandeira )

PS - Estarei publicando esta carta no meu blog Ovo Azul Turquesa

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