Thursday, October 27, 2005

O Ridículo da Vida

Lupicínio e você

Você sabe o que é ter um amor , meu senhor?

Sim, você sabe e morre mil vezes e chuta latas pelas ruas esperando que a dor escorra pelos bueiros, baratas aflitas de Kafka, o amor é tão fantástico nos dois sentidos. Então você volta para casa senta no sofá grená e olha para o livro que nunca vai ler - a história da sua vida.

Ter loucura por uma mulher

Você sabe que não é possível viver assim, quer morrer, arrancar do peito esta doença e mais fundo ainda destruir as raízes retorcidas do desejo e abafar, estrangular e matar toda vida que ainda restou entre os dois.

E depois encontrar este amor
Nos braços de um outro qualquer


Então você sai de novo em direção ao drama, estaciona na calçada em frente ao prédio, entra sorrateiro, coração batendo na surdina: tum tum tum e você sobe as escadas, garganta de farinha, ervas daninhas crescendo no tórax, uma tosse de furor que não deságua em rios, uma canção sem volta.

Você sabe o que é ter um amor , meu senhor?
E por ele quase morrer?


E você senta na escada já sem forças, o sangue ruge nas têmporas, nas veias, nas caudalosas vias por onde escorre seu amor doente, aprisionado e louco, seu amor bandido, seu amor terreno na Barra sem dono e sem razão, seu amor esquilo aprisionado na armadilha, seu amor cansado da guerra e você passa. pelas mil gotas que escondeu nos olhos e escorrega pelos degraus e escorre pelo ralo e nem assim desiste.

Continua a subir

E depois encontra-lo em um braço
que nem um pedaço do seu pode ser

E enfia a chave no buraco negro do seu desespero e você sabe que não pode acreditar nos olhos que mentem e cerra as pálpebras e as luzes fagulhantes desenham corpos enlaçados, a cama, os lençóis, o corpo branco dela e as flores do enterro das suas esperanças, os lírios infinitos, um caminho sem volta. Uma lápide negra e nela escrito - nunca mais. E os enlaçados pés, as pernas nuas e tudo muito claro. Você abre os olhos para não ver.

Há pessoas de nervos de aço
Sem sangue nas veias e sem coração


Seus nervos são de papel crepom, são de elástico mole, se desfazem na chuva, você grita alguma coisa rude, alguma coisa torpe e ela se curva sobre o ventre ah seu ventre que eu amava sua curva da morte, meu enterro. O som do coração tum tum tum :
sangue espirra pelo quarto, borra a cama, escorre pelo ralo junto com você, amigo, você foi embora antes de chegar.

Mas não sei se passando o que eu passo
Talvez não lhes venha qualquer reação


Você olha a janela aberta, o céu lá fora, você sabe que existe alguma coisa em torno, mas é tão distante, menos o silencio.. Subtraindo o som do que já foi, nada restou – dois corpos enlaçados, lençóis vermelhos, uma alma que escorre devagar e o ralo que você abriu no meio dos destroços do seu amor.

Eu não sei se o que eu trago no peito
É ciúme ,despeito, amizade ou horror

Você joga o revólver no chão e vomita no banheiro a alma em pedaços. Você retorna do ralo, pega alguma coisa que sobrou de consciência, pede desculpas ao tempo, volta atrás, desfaz a cena e recomeça.

Eu só sei é que quando eu a vejo
Me dá um desejo de morte ou de dor.

Então desliga o rádio, diz adeus Lupicinio, senta na realidade e descobre, aturdido, que o amor é, simplesmente, o ridículo da vida

De Lavanda


O sexo gemeu mas as pernas andaram, direção do certo. Olhar perdeu o rumo, deu cansaço, cólera, peste, vitiligo, coração parou. Morri. No rastro fui chegando, entorpecida. Dei de beber, fumar, dei pro rei, a rainha, os valetes, perdi seu amor e agora este perfume... Sem rumo fui vagando, entrei em lupanares, fiz força de salmão, enfrentei corredeiras, andei fora dos trilhos e todo trem me pegou. Lavanda... perfume que enterrei bem fundo nesta cova. Eu piso no teu corpo, sapateio no tumulo. Porque o amor é feroz, ah é feroz quando brota e se rasga. Cuspo em ti. Porque o amor é feroz ah é feroz, coração
"Meu tempo morde" (Jacó Blum )

Realpolitik

Cansado, o presidente da mesa repetiu:

O senhor não é obrigado a dizer a verdade. É seu direito constitucional mentir para proteger-se, mas, como cristão, responda sinceramente: Repito o transcrito:

“ que a senhora declara não conhecer o conteúdo da mala com dólares. Que afirma ter confiado no deputado porque é sua progenitora, embora há anos estivessem afastados.”

Da oposição vinha o burburinho:
“exame de DNA...”

O acusado olhou os sapatos acalcanhados dela - o vestido modesto, mãos calejadas no colo.

“ Faca passando manteiga no pão.... sineta da escola... o cheiro de maresia e peixe podre do cais”

Respondeu frio:
- Não conheço esta mulher.

Ao longe o galo cantou. Pela terceira vez.





Monday, October 17, 2005

Parállaxis


Pinturas - Leonor Fini
Quando você pensa que sabe, um dos três porquinhos te ama em Madri”

( livro do Mortos-Vivos, página 23 e meio, em todos os parágrafos )


A Fada dos Dentes esmagou o cigarro e engoliu. O esquilo no seu estômago reclamou dando socos para o ar e gritando: eu sou o Pai dos Burros yeh , yeh! Um enorme cogumelo atômico surgiu do mar no Rio de Janeiro e explodiu as estrelas que caíram na terra de onde germinaram Ray Charles adultos, de óculos escuros e cantando Ruby.

Mithra me olhou desgostosa:

- Onde comprou este potencializador de imaginação? No câmbio negro?
- Foi de gente confiável, excelente produto.
- Estou vendo. Para um concurso infantil não podia ser melhor

Riu sarcástica. Se não fosse a mais esperta ajudante de mente da América, eu já teria me desfeito dela há muito tempo.

- Guarde seus comentários para a crítica literária. Não preciso de um Grilo Falante no meu ouvido.

Pinóquio estrangulou Gepeto - o nariz cresceu até se transformar em um pênis monstruoso e barroco, enfeitado com guirlandas. Ao seu lado a barata de Kafka corria gritando : eu avisei, eu avisei!

Mithra me deu as costas, gargalhando. Fiz sinais obscenos para ela.

- Crianças gostam de surrealismo.
- Mas os jurados não.

A Terra se cobriu de uma poeira tóxica impedindo a respiração.

- Muito infantil - respondi irritado – vamos parar de gracinhas, estamos atrasados.

Nossas mentes atravessaram o cyber espaço até Brasília onde se realizava a etapa brasileira do Concurso de hologramas infantis para o VLO ( Virtual Literary Oscar ).

Mithra se comportou muito bem. A Fada dos Dentes e o Esquilo Em seu Estômago arrasaram. Passamos para o último estágio na próxima semana no mesmo bathorário e mesmo batlocal ( ela odiou a lembrança do homem morcego, eu adoro irritar ajudantes estressadas ).

Nossos oponentes serão Garfield e Homer conhecidos satiristas gregos naturalizados mineiros.

Voltamos à Torre. Estava tão feliz que tentei beijar Mithra virtualmente. Ela me enviou um pentagrama da Cabala.

A Fada dos Dentes agarrou o Esquilo em seu estômago, arremessou contra as Torre Gêmeas de Istambul, no Nepal.
A fenda americana se rompeu, por ela penetrou o pênis cubano explodindo a lua e causando uma chuva de esperma tóxico.

Desapareci no enxofre resultante.

Quando dei acordo de mim, estava no nordeste do Brasil em 2005 e me chamava Severino.
Pode ser apenas um pesadelo.

Na Malásia


Na Malasia faz frio
Quando chovem pardais
E os sustos de amanhã dormem ainda
Seus lentos
Suspiros

Na Malásia tem gente que acredita
Em brincos de jade amarelo
ou faisões tropicais
Ainda meninos

Na Malasia é domingo
todos os dias da semana
E de vez em quando neva
dentro de casa


Tuesday, October 11, 2005

Sombras

Antes que eu me esqueça de tudo, vou digitando este documento.

Fui um dos primeiros candidatos ao programa de implante de memórias para pacientes de Alzheimer Minor .

Como todos os outros, perdi meu passado e vivo um eterno agora, o que me torna um ser onipotente e solitário. Esqueço todos os que se aproximam de mim no momento em que somem de minha presença e sei que existem apenas por causa do meu implante, ao qual agreguei este aspecto importantíssimo.

Pessoas me dão comida, pois não saberei o que fazer ao sentir fome, na verdade nem conhecerei o que é fome em termos abstratos, apenas a sentirei, como qualquer necessidade fisiológica, quando se corromperem as memórias implantadas.

A única coisa que os Minor mantém e os distingue é a capacidade de ler e escrever. Porque acontece este fenômeno, que região do cérebro permanece intacta é algo para os pesquisadores – sei apenas que é assim. Vejo, ouço, digito e leio - estas capacidades não perdi.. Mas como não tenho lembranças originais, de nada adiantará sem o implante. Por isto me candidatei assim que soube da abertura do programa e do meu diagnóstico irreversível.

Roubei, subornei, gastei quase tudo que tinha para recapturar e implantar minhas próprias memórias e algumas alheias.

Consegui ser o primeiro candidato. Misturei acontecidos e desejados, criei um passado que me satisfaz. Já que pude escolher a doença, fui o meu próprio Deus neste resgate.

E te revejo, linda, em Paris, tomando chá enquanto chove - há gotas nos vidros das janelas ...
...e já não sei o que vivi e o que comprei... mas na memória implantada eu te amo, talvez tenha te amado sempre, não importa.

O implante não é confiável, sinto que as lembranças estão se corrompendo... confundo datas, lugares.. foi em Veneza que nos encontramos? Chovia em Londres naquele verão? Ou foi Paris? revejo sua boca, cada vez menos nítida, olhos misteriosos de marzipan... o que é marzipan? Lembro da frase, mas não do rosto ou dos motivos..

Meu terror é voltar a viver apenas nesta clínica onde estou encerrado. Eu e o micro que me deram para relatar as sensações e experiências - sou uma cobaia humana.

Memórias são minha única viagem - por elas saio daqui... mas cada vez mais me distancio das lembranças. Vivo um eterno presente sem sombras... fui implantado ou inventei?

Releio o que escrevi - Veneza?... Olhos de marzipan?... Chuva em Paris?.. implante.. não sei mais o que significam..... tudo parece absurdo, confuso...

Estranho texto... quem terá escrito? Às vezes penso que existem outros como eu em algum lugar, mas é uma impressão fugidia. Meu mundo é aqui e neste micro onde leio coisas que não compreendo.

... Vivo um eterno presente sem sombras.... Gosto desta frase. Mas, por algum motivo que não consigo recapturar, parece triste.

E repito: você, na chuva, em Paris, para me consolar. Embora não tenha a menor noção do significado.

Há vidros em Veneza no verão...

Pintura - Leonor Fini

Momento II

Momento II ( pessoas )

Vago e antigo
o olhar é morto
perdido
( por que caminhos me naufraguei
em que escolhos me dispersei ? )
Na parda noite cultivo o ócio
( por que me escondo de teus olhares
em quem agora me olharei? )
pobre de vestes
pobre de amores
num raio tímido
além da vida
( ontem fui príncipe em mil pomares
Ah ontem sim eu fui rei de mim )
Liso e sem bordas
de volta ao ovo
hoje estou só
como um morto novo.


Pintura - Maria Bandeira

Sunday, October 02, 2005

Pobres Meninas

DO PÓ

Do Pó. Não tinha nome ou sobrenome conhecido.

Do pó, como seus companheiros de calçada na praça da Liberdade mal vigiada. Magra demais, mirrada demais, lutara para sobreviver, o corpo não acompanhara - ficaria perdido na meninice como se nunca pudesse entender o que era ser adolescente.

O universo eram os bancos e as flores empoeiradas de sol baixo. Não tinha luas preferidas nem estrelas para apontar. Apenas o sobreviver seco, o barato que enganava a fome.

Amigos, poucos - do coração nenhum. Andava na banguela para desviar de trombadas e mesmo assim elas vinham. Pneumonia teve quatro. Do hospital guardou o cheiro de urina e promiscuidade. E um doce de abóbora que uma dona bacana descolara pra ela. Coisa de machucar de tão gostoso, descendo macio na garganta. Quando a febre baixou, nem esperou a assistente social, correu de volta para a Liberdade. A única que conhecia. Empoeirada e gasta, mas sua.

Do pó. Roubava dos velhos que caiam em rasteiras, preferia senhoras, sempre tinham dinheiro e outras coisas na bolsa. Uma vez achou um batom cintilante. Pintou os lábios e escreveu na calçada. Olhou seu reflexo na poça suja entre os carros.. era roliúdi, artista da Globo. Vira novelas no abrigo, outros retalhos, na época das internações. À noite, as televisões ficavam desligadas. A festa rolava aqui fora. No cheiro adocicado do fumo que queimava o pulmão. No crack, no pó. Poeira de estrelas. Cintilantes vazios entre seus pés de menina machucada. O que havia além de mim?

Os homens chegavam e pegavam as mais bonitas, depois distribuíam o pó, arrancavam o troco todo do trampo na calçada. Do pó era muito magra, muito menina para ser de serventia na rua. Davam uns empurrões nela e mandavam andar.

A morte foi curta e sem drama. Bala perdida em tiroteio na avenida, quem mandou estar na trajetória do destino? Caiu sem barulho como vivera. Silencio e poeira levantando. Bem devagar. Um vento maligno e doce percorria a rua.

Caixão de indigente, acompanhamento de ninguém.

Do fundo da cova, ouviu o padre dizer - Descanse em paz...

A poeira entrava pelos pulmões, ardia nas artérias, subia pelas entranhas... Do pó gemeu pela primeira vez - Não quero! Mas o pó perseguia seu corpo , sua alma, se alastrava pela terra, inundava a calçada, percorria a praça. Poeira incansável, obstinada, carregou-se para o alto, despertou planetas, atravessou galáxias...

E Deus espirrou.

Pintura - Leonor Fini

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